Moçambique: “Mama, meu coração está a doer”

Foto: Tadeu Andre/MSF

A gestora de comunicação Amanda Bergman relata sua experiência com comunidades afetadas pela violência em Cabo Delgado, Moçambique

Era a meu primeiro projeto com MSF e eu não sabia muito bem o que esperar. Decidi me preparar e fazer uma pesquisa sobre Moçambique, que seria minha casa pelos próximos 12 meses.

Fiquei surpresa ao descobrir sobre a guerra civil que durou 15 anos no país e deixou cicatrizes políticas e ambientais visíveis até hoje. Eu sabia que, em 2019, Moçambique tinha sido atingida por dois ciclones de proporções nunca vistas no país. Mas o que eu descobri foi que, mesmo um ano depois, a cidade de Beira, no centro do país, ainda vivia com as consequências da destruição causada pelo ciclone Idai.

Mas foi a província de Cabo Delgado, que desde 2017 vive um conflito armado, que proporcionou uma onda de emoções e sentimentos que foram difíceis de serem descritos em palavras. Ao longo de 2020, o conflito se intensificou, e o que começou com algumas centenas de deslocados, rapidamente se tornou uma crise humanitária de gigantescas proporções, com centenas de milhares de pessoas sendo afetadas pelo conflito, forçadas a deixar suas casas, trabalho, pertences e até mesmo parte de sua família para trás. No entanto, Cabo Delgado era uma dessas crises que chamamos de “invisível”. Uma tragédia relegada ao esquecimento, uma crise humanitária negligenciada pela mídia.

Em março de 2020, um ataque aconteceu na cidade de Palma, norte da província de Cabo Delgado. Meu trabalho como gestora de comunicação naquele momento era coletar testemunhos das pessoas que estavam chegando em Pemba, onde MSF tem um de seus escritórios.

Eu estava em um ginásio onde as autoridades tinham improvisado um centro de reassentamento temporário e organizações humanitárias estavam prestando apoio com comida, água, redes mosquiteiras e onde MSF estabeleceu uma tenda para fornecer cuidados de saúde e saúde mental.

Uma senhora me viu e me chamou: “Mama” (aqui é muito comum usarem o termo “mama” para se referir às mulheres e “papa”, aos homens). Ela disse: “Mama, meu coração está a doer”. Naquele momento, fiquei assustada. Pensei que ela pudesse estar tendo um ataque cardíaco e porque eu estava com o colete de MSF, pudesse ter achado que eu era médica e poderia ajudar. Imediatamente, perguntei se ela precisava de um médico e ela complementou: “Meu coração está a doer porque não sei onde meu filho está”.

Algumas vezes, nós temos dificuldade em encontrar pessoas que queiram partilhar suas histórias conosco. Outras vezes, essa troca é quase que necessária, como uma forma de terapia. E ampliar a voz dessas pessoas, de suas histórias, para mim, é uma honra.

A dona Zainabo me contou que ela e seus filhos estavam juntos quando o ataque começou, mas quando se deram conta do que estava acontecendo, entraram em pânico. Cada um correu para um lado diferente e, na correria, acabou se separando e se perdendo de seu filho mais velho. Ela e seus outros dois filhos conseguiram entrar numa barca que saiu de Palma em direção à Pemba. Ela vinha tentando entrar em contato com o filho, mas como as torres de telefone haviam sido danificadas, não tinha conseguido ter notícias.

Eu encaminhei a dona Zainabo para uma organização que estava trabalhando com reunificação familiar, mas infelizmente não sei se ela conseguiu encontrar o seu filho. O que eu sei é que, assim como dona Zainabo, há centenas de famílias na mesma situação. Esse episódio me marcou muito, me fez questionar a aleatoriedade das coisas. São tantas situações que estão fora do nosso controle – como o lugar onde nascemos, por exemplo – que podem determinar nossas vidas. Me questionei muito por que a dona Zainabo teve que passar por isso? Uma situação que ninguém nunca deveria passar.

Não é um trabalho fácil pegar uma câmera e um microfone e gravar a história de alguém. Naquele momento, toda a sua atenção está naquela pessoa, na história que ela está contando. As palavras que são trocadas ficam na sua cabeça por muito tempo, como as da dona Zainabo ficaram na minha.

Eu queria ter podido fazer mais. Ter encontrado o filho dela e de todas as “mamas” que estavam naquela situação. Mas isso estava fora do meu controle. O que eu podia fazer, e o que fiz, foi escutá-la. Escrevi a sua história e publiquei-a, usando as plataformas de MSF para amplificar a sua voz.

Amanda Bergman atua como gestora de comunicação de MSF em Moçambique desde 2020. Nesse mesmo ano, e ainda em 2021, o conflito na província de Cabo Delgado, no nordeste do país, se intensificou, com centenas de milhares de pessoas atacadas e desabrigadas. Em apoio, MSF prestou assistência médica e de saúde mental e apoiou centros de tratamento de saúde por meio de clínicas móveis. Além disso, nossas equipes fornecem apoio com água e saneamento, bem como itens de primeira necessidade, tais como itens de higiene e culinária para aqueles que estão nos acampamentos de deslocados.

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