Minha primeira semana em um projeto de MSF

O pediatra Alexandre Bublitz fala sobre suas primeiras impressões na Nigéria

O pediatra Alexandre Bublitz fala sobre suas primeiras impressões na Nigéria

Que semana! Quando decidi me candidatar para trabalhar com Médicos Sem Fronteiras (MSF) já imaginava que iria encontrar um mundo diferente, conhecer pessoas incríveis, mas que também veria algumas das mais cruéis faces da humanidade; entretanto, não podia imaginar o quão arrebatadoras essas experiências seriam. Hoje completo minha primeira semana como pediatra. Uma semana atuando em campo com MSF e me sinto feliz.

Como é meu primeiro projeto, estou incumbido do desafio de viajar para Maiduguri, uma cidade no norte da Nigéria, para trabalhar em um hospital pediátrico tratando crianças com desnutrição grave. A Nigéria, também conhecida como o gigante da África, é um grande, rico e belo país, mas encontra-se dividido. Colônia da Inglaterra até 1960, o país conquistou sua independência, mas ainda mantém feridas abertas do período colonial. A língua oficial é o inglês; entretanto, apenas aqueles com maior acesso à educação sabem falar a língua, o restante se comunica com diferentes dialetos africanos. São mais de 300 línguas e inúmeras culturas, todas sob uma mesma bandeira. O clima nigeriano também é muito variado; o sul verde, próximo ao mar, e o norte quente e seco, perto do grande deserto do Saara. É nessa região em que me encontro, no norte, zona desértica. Desértica não apenas na vegetação, mas também desértica quanto a recursos, a empregos, a habitação, a saneamento e, sobretudo, a alimentos.

Ao sobrevoar o país, saindo da capital Abuja para a cidade de Maiduguri em um pequeno avião de hélice bimotor, pude notar, olhando através da pequena janela de passageiros, a gradual transformação da paisagem variando dos tons verdes, com belas árvores que iam ficando cada vez mais raras, dando lugar a um amarelo queimado pontilhado por arbustos. Do alto do avião, perto da cidade pude enxergar uma barricada. Estava adentrando em uma zona de conflito.

Em meio a esse conflito, encontra-se a população. Um povo carismático, de sorriso fácil, apesar da dura realidade em que vivem. Suas peles maltratadas pelo sol forte e o vento seco, os pés rachados e os corpos magros, são cobertos por coloridos véus. Nas ruas, em meio à terra seca e o sol escaldante, vejo uma mulher vestindo um véu rosa claro de cor muito viva, vindo do outro lado da rua, outra mulher carregando seu filho nas costas veste verde limão enquanto conversa com outra mulher vestindo azul-claro. A paisagem seca de tom predominantemente amarelo queimado, quase apática, ganha cor através dos homens e das mulheres que aqui vivem.

Hoje são aproximadamente 3 milhões de pessoas na cidade, mas metade delas não têm onde morar. Foram deslocadas pelo conflito. Nos últimos anos a guerra atingiu vilarejos, aldeias e pequenas cidades em todo o arredor do estado de Borno, do qual Maiduguri é a capital. As pessoas que ali vivem fogem para sobreviver. Abandonam suas casas, seus empregos e suas cidades para escapar da morte e buscar abrigo em outro local. A história dessas pessoas é de muita dor e sofrimento. Seus familiares assassinados, seus amigos perdidos, suas casas saqueadas, mulheres violentadas, histórias interrompidas. Sem saber como reconstruir suas vidas, buscam refúgio na capital. Infelizmente, ao aqui chegarem, não encontram algo muito melhor.

Maiduguri originalmente comporta aproximadamente 1,5 milhão de habitantes, mas com os deslocados internos sua população dobrou. Sem sistema gratuito de saúde, sem saneamento básico para a maioria, sem ter onde morar, essas pessoas se amontoam pela cidade. Ao trafegar com o carro de MSF, posso facilmente ver o reflexo disso. O lixo fica acumulado no meio da rua, são plásticos e restos ali jogados. Sobre ele, cabras dividem o espaço com crianças que ali transitam de pés descalços. Três delas sorriem ao ver o grande carro branco de MSF passar e acenam para mim. Eu aceno de volta também, sorrindo, mas por dentro meu coração se retorce.

Esses são meus pacientes. Trabalho em um hospital pediátrico focado em tratar desnutrição grave. São criança em sua maioria com menos de 5 anos de idade que, junto com suas famílias, buscaram refúgio na cidade. Aqui, sem ter onde morar ou o que comer, sobrevivem ao conflito. Elas chegam até mim muito fracas. Em seus pequenos corpos emagrecidos, percebo a pele seca e enrugada, os olhos pálidos e fundos, a boca rachada, os ossos proeminentes quase sem músculos ao seu redor. A imagem choca. Um dos critérios para diagnosticar a desnutrição é medir a circunferência da parte superior do braço de uma criança, que mede poucos centímetros, algo pouco mais grosso que meus dedos.

 A falta de saneamento e higiene básica, assim como a falta de vacinação ou de remédios gratuitos, faz com que enfermidades simples se propaguem facilmente. Tratamos desnutrição, epidemias de sarampo, malária e cólera. Aqui, em um corpo frágil, uma simples diarreia é o suficiente para matar.

Nosso hospital, sem muitos recursos e sem exames sofisticados, é feito de barracas, lonas e incríveis pessoas. Eu assessoro 10 médicos nigerianos. Todos muito competentes e experientes em tratar desnutrição. Ajudo discutindo casos mais graves e orientando certos tratamentos. Sendo um novato nesse mundo, já percebi que tenho muito a aprender e desde cedo na medicina soube que os melhores professores são nossos pacientes. Infelizmente, meus professores passam fome. Suas vidas não mais se baseiam em grandes conquistas, mas sim em conseguir o alimento de cada dia. Com fome, não têm forças para brincar. Com fome, uma criança não consegue aprender. Com fome, contrariando todas as expectativas e todo o sofrimento pelo qual passam, elas ainda conseguem sorrir. Eu sorrio de volta.

Essa foi apenas minha primeira semana. Uma semana intensa, dura, com muitos choques de realidade, de muitos socos no estômago, mas também com muitos sorrisos no rosto. Sei que o trabalho será árduo, sei que ainda tenho muito a aprender, mas também já percebo quanta diferença podemos fazer. Os sorrisos, agora mais rechonchudos das crianças que damos alta, são a prova disso. Uma semana atuando em campo com Médicos Sem Fronteiras e me sinto feliz.

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