Interculturalidade como eixo norteador da assistência à saúde

Thaiani (com a camisa de MSF) no projeto na Terra Indígena Yanomami. © Diego Baravelli/MSF

Thaiani Daniëls trabalhou como gestora de promoção de saúde com engajamento comunitário na Terra Indígena Yanomami; ela conta como desenvolveu as atividades e o que aprendeu durante sua experiência com MSF.

Depois de 14 meses de trabalho* como gestora de promoção de saúde e engajamento comunitário no projeto de Médicos Sem Fronteiras (MSF) na Terra Indígena Yanomami (TIY), em Roraima, reflito sobre as experiências e aprendizados que vivi. Aqueles que já acompanharam meus diários de bordo sabem que gosto de criar imagens com palavras. Nesta ocasião, desejo compartilhar os saberes que as comunidades, as pessoas que utilizam nossos serviços, meus colegas de trabalho e a literatura me ensinaram.

Como dizem os parentes, “é uma história longa”, e aqui será muito mais curta do que deveria. Espero instigar a curiosidade para que você, que está lendo, também se interesse pelo cuidado aos nossos povos tradicionais e guardiões da floresta e siga se atualizando sobre a realidade enfrentada por esse povo.

Em janeiro de 2023, o Governo Federal brasileiro anunciou a declaração de Estado de Emergência em Saúde Pública no território Yanomami. Em abril do mesmo ano, MSF começou a colaborar na resposta à emergência, atuando diretamente com a Saúde Pública Indígena Brasileira. Nossa área de atuação em Roraima inclui uma resposta urbana na Casa de Saúde Indígena Yanomami e Ye’Kwana (CASAI YY) e na região de Auaris, na TIY.

Saiba mais sobre o projeto de MSF na Terra Indígena Yanomami

Na CASAI YY, encontramos um espaço multiétnico, caracterizado pela diversidade cultural, com 19 alojamentos separados por diferentes grupos. Para ilustrar, lá escutamos:
– Variante dialetal Yanomami das Serras
– Variante dialetal Yanomae
– Super dialeto Yanomami do Amazonas
– Dialeto Sanöma
– Dialeto Ninam (Xiriana, Xirixana)
– Dialeto Yaroami nas regiões do Apiú, Ajarari e Serra do Pacu
– Variante dialetal Maloca Papiú e Kayanaú
– Ye’Kwana, do tronco linguístico Karib

Na região de Auaris, os Sanöma compartilham o espaço de agricultura, coleta e caça com o povo Ye’Kwana. O contato entre os grupos não é diário e é marcado por um distanciamento histórico. A mandioca e a banana são os principais alimentos cultivados, além de outros produtos da roça. A caça e a coleta também são essenciais para a subsistência.

Os Sanöma são um grupo predominante na região de Auaris, área de atuação de MSF na TIY, e um dos quatro subgrupos conhecidos da linguística Yanomami (que também inclui os Yanoami, Yanomae e Yanomamös), que apresenta uma marcante diversidade. Sua família linguística é considerada isolada — não pertence a nenhum tronco linguístico e não é falada por mais ninguém.

Os Yanomami são frequentemente considerados indígenas de ‘contato recente’, porém essa designação não se refere à temporalidade de contato, mas ao domínio de seus códigos, que se distanciam daqueles utilizados por pessoas não-indígenas), configurando suas particularidades nas relações, comunicações e formas de interação, legitimada e internalizada por eles.

Localizados entre Brasil e Venezuela, os povos Yanomami estão dispersos, e a mobilidade territorial — muitas vezes confundida com nomadismo — é influenciada pelo esgotamento dos recursos naturais e pela mineração ilegal descontrolada, que são, entre outras razões, contribuidores nos agravos à saúde.

Como informações relevantes para o contexto da saúde, para os Yanomami, existem dois aspectos: doenças de contato (não indígenas, ‘desconhecidas’) como sarampo, malária, doenças respiratórias, entre outras; e doenças indígenas ou espirituais (como ‘feitiçaria’ ou trabalhos espirituais, por exemplo). É fundamental reconhecer que a noção de saúde para os não indígenas não se alinha à dos indígenas. Portanto, os serviços de saúde oferecidos devem ser complementares e respeitar as realidades locais.

A complexidade da adaptação a cada contexto e realidade específica criam desafios para uma abordagem adequada às culturas presentes. A educação continuada é essencial para entender esses aspectos. Por exemplo, é crucial que profissionais não indígenas compreendam as regras de parentesco para que, no cotidiano de MSF e do DSEI YY, possamos oferecer cuidados que reflitam uma matriz de atenção à saúde marcada pela interculturalidade.

A imersão cultural é uma estratégia fundamental para a aproximação com a comunidade. É imprescindível a adaptação da equipe e dos profissionais de saúde às características culturais especiais da população para facilitar e estreitar a relação e a comunicação a comunidade atendida.

 

Thaiani (centro da imagem) durante cerimônia de inauguração do Polo Base da Unidade de Saúde Indígena da região de Auaris. MSF, em parceria com o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami Ye´Kwana, reformou e ampliou a instalação. © Diego Baravelli/MSF

Como eixo orientador para trabalhar a Promoção de Saúde, devemos atuar desde o “pequeno”, utilizando frases curtas e palavras-chave — é necessário investir em questões investigativas que venham do universo deles, não sendo abstratas. Habilidades como paciência – que envolve a temporalidade e a repetição – dinamismo para entender a dinâmica do grupo, a interação – como apresentação, reconhecimento, escuta, observação – são essenciais. O conhecimento, a familiaridade e a sensibilidade em relação à cultura também são fundamentais para garantir um tratamento digno.

A abordagem intercultural na saúde exige um estudo aprofundado das relações legitimadas, requerendo uma metodologia bem planejada, além de flexibilidade e adaptabilidade à realidade diária das comunidades.

Gostaria de trabalhar com MSF? Acesse: Trabalhe – MSF Brasil

 

No projeto, a equipe de Promoção de Saúde com Engajamento Comunitário participa de reuniões com atores comunitários para apresentar a proposta de ciclo de trabalho, sempre respeitando o ritmo e os interesses das populações. As reuniões são conduzidas por meio de conversas formais ou informais, valorizando o diálogo e os discursos coletivos, que são características da organização social Yanomami. Os discursos diários, diálogos para saudar os convidados, diálogo cerimonial de troca de notícias e palavra de amizade, que ocorre nas ocasiões de festas funerárias e assembleias gerais, são exemplos de formatos variados que existem, com larga duração de tempo ou até que se esgote o que se tem para conversar.

Sobre as atividades de Educação em Saúde, a linguagem utilizada deve seguir narrativas cíclicas, complementando as mensagens-chave adaptadas por MSF, sempre em conexão com as experiências vividas. O aprendizado deve ocorrer pela observação e prática, assim como na educação indígena, em que os Yanomami ensinam suas crianças as tarefas cotidianas.

O diagnóstico educacional de contato com a escrita não é regra nesse trabalho, inclui também a oralidade, leitura e brincadeiras, sendo no idioma materno e no idioma português. Portanto, a presença de profissionais de mediação intercultural é imprescindível na construção das atividades propostas.

Atividade de promoção da saúde de MSF na Terra Indígena Yanomami. © Diego Baravelli/MSF

O direito ao acesso à saúde e à tomada de decisão informada sobre si mesmo tornam a promoção da saúde essencial. Os serviços prestados por MSF são divulgados à comunidade, que recebe informações sobre disponibilidade e sobre como acessá-los, além de orientações sobre os serviços de saúde pública. Essa promoção é realizada por meio de mensagens-chave e imagens não-abstratas que refletem a realidade do nosso trabalho nas comunidades, além de conversas diretas com aqueles que se mostram abertos a isso.

A “promoção do bem-viver” representa uma parte do trabalho que é desenvolvido em conjunto com as comunidades, considerando os saberes das crianças Yanomami, que aprendem através da brincadeira e da liberdade. O objetivo é criar um espaço para desenvolver coletivamente formas de cuidado, fortalecer o diálogo entre usuários e a equipe de saúde, destacar as relações sociais e cosmopolíticas, e promover trocas de conhecimentos e momentos de diversão.

Para finalizar, ao compartilhar alternativas e caminhos para aproximar os universos das equipes de saúde e das populações atendidas, é importante destacar que a crise sanitária humanitária ainda está longe de ser resolvida. A desestruturação de ordem social enfrentada não se altera em um tempo limitado ou apenas enquanto há visibilidade. A situação que o povo Yanomami enfrenta pode levar à perda irreparável de sua identidade, refletindo a etimologia do próprio nome dado a esse povo: ser humano.

Os desejos que expresso aqui — inspirados pelas próprias regras deles — incluem a reciprocidade entre as pessoas, a convivência harmoniosa com a natureza e um profundo respeito pela terra e pela floresta.
Awai! Awei! Chäänöge na!

*Diário de bordo escrito em setembro de 2024

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