A força de um pescoço

O pediatra Alexandre Bublitz fala sobre cuidados de desnutrição e a força das mulheres no norte da Nigéria

Ainda é cedo da manhã de domingo, o sol está forte como é usual e me desloco em direção ao hospital. Uma visita rápida para ver se tudo está bem e se algum dos médicos precisa de alguma ajuda. De dentro do carro de Médicos Sem Fronteiras, sentado na parte de trás, olho Maiduguri pelas janelas; a cidade do norte da Nigéria está mais movimentada no fim de semana. Entre as pequenas ruelas de chão batido, homens encontram-se deitados sob a sombra das árvores em tapetes de estilo persa esticados pelas ruas enquanto crianças correm pelo local, algumas atravessando perigosamente na frente do carro, que anda lentamente.

Um grupo de crianças começa a correr atrás do nosso veículo abanando e gritando: baturi! – “homem branco” em hauçá, uma das trezentas línguas faladas no país. Entre os transeuntes, duas mulheres me chamam atenção. Mãe e filha. A mãe veste véu e vestido vermelho, cobrindo o corpo, e a filha, um vestido rosa e azul, as cores da escola local. Ambas caminham enquanto equilibram grandes bacias sobre suas cabeças. Com postura reta, seus pescoços erguidos são capazes de suportar grande peso. Lembro-me de uma paciente que vem se recuperando bem e decido que irei visitá-la hoje.

No hospital, as coisas estão calmas pela manhã, mas a noite havia sido difícil: perdemos mais uma criança para a desnutrição grave. Após ver todos os pacientes da UTI junto com o dr. Oli, procuro Hadiza, uma das promotoras de saúde que vem me ajudando muito com traduções. Encontro-a do lado de fora de uma das tendas. Cumprimento-a com um aceno de cabeça. É considerado desrespeitoso em algumas culturas locais um homem tocar em uma mulher sem ser seu marido ou parente. Convido-a para me acompanhar em uma conversa com a mãe de uma paciente que se encontra quase de alta.

Caminhamos em direção a uma das tendas sob o sol forte. Nessa grande barraca, com mais de 23 camas, ficam os pacientes em tratamento para desnutrição grave. Aqui, recebem fórmula láctea e um preparado de pasta de amendoim com alta quantidade de vitaminas, minerais e calorias para que possam ganhar peso antes de voltar para casa. Em uma das macas dentro da barraca de lona, vejo Hauwa, uma menina de 3 anos de idade, sentada na cama comendo pasta de amendoim. Não consigo deixar de abrir um sorriso. Essa menina esteve muito perto da morte. Quando chegou ao hospital, encontrava-se muito doente, com desnutrição severa agravada por infecção generalizada. Seu corpo era apenas ossos e pele, os olhos fundos e a boca rachada que nada dizia. Quando primeiro a vi, estava inconsciente e achei que iríamos perdê-la. Passou dois dias sem abrir os olhos na unidade de tratamento intensivo, mas aos poucos foi acordando. Logo nos primeiros dias não conseguia sentar ou mesmo firmar a cabeça, seu pescoço estava muito fraco para poder sustentar seu peso. Felizmente, com o tratamento adequado, ela foi melhorando. Seu primeiro sorriso surgiu alguns dias depois, quando, ainda fraca, ganhou balões para brincar. Hoje, a menina senta, sorri com o pescoço erguido e come pasta de amendoim com muito gosto.

Ao ver minha aproximação, a mãe de Hauwa sorri. Puxo uma cadeira e me sento ao seu lado. Nas últimas semanas, criamos uma boa relação. Ela me agradece em inglês: thank you, em um sotaque carregado de quem aprendeu uma palavra nova em uma língua muito diferente apenas para demonstrar sua gratidão. Eu sorrio de volta e repito as palavras.

Falmata é uma mulher de 33 anos, considerada já uma pessoa mais velha aqui. A expectativa de vida na Nigéria beira os 53 anos de idade. Como a maioria das mulheres, casou-se muito jovem, pouco depois de sua primeira menstruação. Ela me conta triste que demorou muito para engravidar pela primeira vez, chegando a procurar curandeiros tradicionais para ajudarem-na. Seu primeiro filho veio apenas quando já tinha 16 anos de idade. Apesar do começo tardio, ela já deu à luz nove crianças, vindo a perder seis delas. Sem métodos contraceptivos, é muito comum as mulheres terem vários filhos ao longo de sua vida. Da mesma forma, devido aos graves problemas de saúde e a falta de condições, é comum perderem tantos outros. A Nigéria possui uma alta taxa de mortalidade infantil e a história de Falmata se repete entre as mães com quem converso. Seus olhos se enchem de lágrimas e o seu olhar fica distante ao me contar isso. Digo que sinto muito.

Hoje, são três crianças, duas meninas e um menino. O garoto, mais velho, com 6 anos, nasceu ainda no vilarejo de Bama, e as duas meninas, uma com 3 anos e a outra com pouco mais de 1 ano, nasceram em Maiduguri, em um dos campos de deslocados internos. Falmata conta que ela e seu marido tiveram que fugir do vilarejo no qual moravam para escapar das lutas armadas. Com medo do conflito, muitas família abandonam suas casas e suas terras, deixando tudo para trás, e procuram abrigo em cidades maiores. São milhões de pessoas que se abrigam em Maiduguri. Sem saneamento básico, sem casas para morar, essas pessoas adoecem e a fome prevalece nos tempos de seca. Já se passaram quatro anos desde que Falmata abandonou seu vilarejo.

O conflito entre o estado e os grupos armados trouxe muitas perdas; o cunhado de Falmata foi uma dessas vítimas. Baleado em um confronto, deixou sua mulher viúva cuidando sozinha de três filhos. Infelizmente, após a morte do marido, sua irmã ficou muito fraca e doente. Falmata conta que ela morreu de coração partido. Após a morte da irmã, Falmata adotou as três crianças, mas, infelizmente, seu marido não as aceitava. Para poder cuidar dos filhos de sua irmã, divorciou-se do marido, ficando sozinha com seus três filhos e os três sobrinhos. Uma mãe sozinha criando seis crianças.

Sentindo o peso da cabeça, o pescoço da mãe de Hauwa cede e ela olha para baixo por um instante, pensativa. A família tem passado dificuldade. Moram em uma pequena casa de telhas de zinco. Na rua, do lado de fora, ela cozinha em um fogo de chão lanches para as pessoas que por ali passam. O dinheiro nem sempre é o suficiente para sustentar a família. Quando Hauwa adoeceu, apresentando diarreia, muito comum em áreas sem saneamento, sem esgoto ou água tratada, sua mãe a levou a um hospital do governo. Infelizmente, aqui e na maior parte da África não existe sistema público gratuito de saúde. Para ser atendido, você precisa pagar. Falmata gastou parte de suas economias no tratamento da filha, mas ela não melhorou e Falmata procurou ajuda novamente. Desta vez, veio ao hospital de Médicos Sem Fronteiras, onde atendemos gratuitamente todos os pacientes. Conta que está preocupada com o futuro, mas estava feliz, pois sua filha estava bem. Ela sorri novamente e me agradece mais uma vez. Thank you, ela repete.

Essa impressionante mulher segue resistindo aos desafios que a vida lhe traz e ainda encontra energias para sorrir. Eu agradeço novamente por compartilhar sua história e suas dores. Digo a ela que é uma mulher muito forte e que fico feliz em conhecê-la, desejando-lhe sorte. Tiramos uma foto juntos, eu, Falmata, Hauwa e a pequena bebê de colo. Três mulheres lutando pela sobrevivência no interior da África. Hauwa teria alta dois dias depois, agora apresentando um sorriso fácil no rosto já mais bochechudo, conseguindo caminhar e sustentar o peso da própria cabeça. Enquanto escrevo esse texto, penso em Falmata e nos desafios que terá pela frente.  Sua jornada está longe do fim, mas acredito nessa forte mulher e a imagino caminhando com pescoço firme e cabeça erguida.
 

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