De volta a Angola

Aline Studart conta como foi voltar ao mesmo hospital em que já havia trabalhado dois anos antes

Em março de 2018, recebi uma proposta de MSF para trabalhar na epidemia de malária em Huambo, Angola. Eu queria trabalhar em uma epidemia de malária e fiquei ainda mais interessada quando soube que seria na mesma cidade onde trabalhei dois anos antes, durante uma epidemia de febre amarela. A ideia de voltar ao mesmo hospital, reencontrar os profissionais locais e poder falar com os pacientes sem precisar de tradutor, já que em Angola se fala português, era bem empolgante.

No começo, fiquei um pouco apreensiva porque não tinha tanta experiência com crianças em estado grave. Mas pude dividir minhas dúvidas e angústias com uma pediatra argentina, uma médica brasileira e com algumas amigas pediatras que me ajudaram bastante através de mensagens de celular. Em poucos dias me senti mais segura e confiante e percebi que eu conseguiria dar conta do recado. Além disso, contei com o apoio de excelentes enfermeiras portuguesas e espanholas e de uma dedicada equipe de médicos e enfermeiros angolanos.

O primeiro dia no hospital já foi bem corrido. Médicos Sem Fronteiras era responsável pelo cuidado de todas as crianças com malária grave em Huambo. Tínhamos cerca de 150 pacientes, divididos em 15 enfermarias. No fim do dia, recebemos uma criança de 2 anos de idade, que estava em estado bem grave. Estava em coma e apresentava insuficiência renal. Apesar de todos os cuidados, ela faleceu poucas horas depois de chegar ao hospital. Foi difícil presenciar o desespero da mãe e da avó ao saberem que a criança já estava sem vida. Foi ainda mais doloroso ver a avó enrolar a criança morta em um típico pano colorido africano, colocá-la nas costas e levá-la para casa.

Nesse mesmo dia, recebemos um menino de 8 anos que, além de malária, tinha pneumonia. O estado dele também era bem grave. Respirava com muita dificuldade. Fazia esforço para abrir os olhos quando falávamos com ele e não conseguia responder. Iniciamos antibiótico, oxigênio e hidratação venosa. Examinei essa criança várias vezes durante o dia, sempre com esperança de perceber alguma melhora. No fim do dia, quase nada havia mudado. No dia seguinte, ao chegar ao hospital, tive medo de não encontrá-lo. Mas lá estava ele: sentado, respirando com menos dificuldade e com menor necessidade de oxigênio. Ele olhou para mim e em seguida olhou para sua mãe e falou: “Ela é minha amiga”. Nunca imaginei que, mesmo com toda a gravidade, ele tinha percebido o meu esforço em cuidar dele.

Nos dias seguintes tivemos muitas recuperações e alguns óbitos. Uma criança que me marcou bastante foi o Manuel, de 9 anos. Ele tinha uma doença hepática crônica que se agravou com a malária. Durante a internação ele apresentou vários episódios de convulsão, além de muitos sangramentos, com necessidade de receber várias transfusões de sangue.

Sempre que eu lhe perguntava “Manuel, como estás?”, ele respondia com doçura: “Estou a melhorar”, apesar de estar visivelmente piorando e sofrendo com os sintomas da doença. O Manuel não tinha mãe. Mas o pai estava sempre ao lado dele, cuidando com muito carinho do seu menininho. Numa certa madrugada, Manuel apresentou novas complicações e acabou falecendo. Nunca esquecerei a resiliência daquela criança e o amor daquele pai.

Outra criança marcante foi o Zacarias, de 1 ano. Tinha malária cerebral e apresentou inúmeras convulsões, apesar do tratamento, e passou vários dias em coma. Estava bastante desnutrido e evoluiu com grave disfunção circulatória. Recebeu tratamento intensivo. Pouco a pouco, Zacarias foi nos surpreendendo com sua inesperada recuperação.
Também tivemos o Mário, o José e o Leonardo. Os três apresentavam insuficiência renal. Apesar de todas as dificuldades para fazer exames e adquirir o material necessário, conseguimos encaminhá-los para a hemodiálise. Após retornar ao Brasil, tive notícias de que os três estão se recuperando bem.

Aprendi a falar poucas palavras em umbundu, a língua local, entre elas walali (Bom dia) e twapandula (Obrigada). A maioria das pessoas fala português, mas algumas mães de pacientes só falavam umbundu. Minhas tentativas de falar umbundu eram sempre seguidas por muitas risadas das mães, que ficavam empolgadas para me ensinar mais. Era um momento mágico.

Quando o número de casos de malária começou a diminuir, MSF decidiu que deveríamos fechar o projeto. Entendo que não podemos ficar eternamente em cada projeto e que já não havia mais critérios de emergência para continuarmos lá, mas fiquei bem angustiada com a ideia de sair e imaginar que as crianças com malária já não teriam a mesma assistência.

No último dia decidi ir a pé até o hospital, como uma forma de me despedir da cidade. No caminho, ouvi alguém me chamar: “Doutora!”. O rosto daquela mulher era familiar, mas não reconheci de imediato. Logo ela falou: “Sou a irmã do Carlos, paciente que vocês salvaram da febre amarela. Nunca nos esquecemos de vocês.” Também nunca esqueci o Carlos. Foi um paciente que esteve em estado gravíssimo e teve uma recuperação impressionante. Fiquei muito emocionada com esse encontro. Percebi isso como um sinal de que iríamos embora em breve, mas o resultado do nosso trabalho permaneceria.
 

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