De tirar o fôlego

Thaiani Daniëls compartilha sua experiência como gerente de promoção de saúde e engajamento comunitário de MSF, atuando com populações afetadas por conflitos em Cabo Delgado, Moçambique.  

“Estou atuando no projeto de Macomia, distrito no norte da província de Cabo Delgado, em Moçambique. Cheguei em fevereiro e retorno em maio. Uma das fortes impressões que marcam é a beleza do lugar. A cor impactante da terra, em mistura com o verde intenso da floresta densa que a rodeia, o céu com azul diferenciado, desenhado por nuvens cor prata e as estrelas que dominam sobre nossas cabeças à noite, contando com a vista ampla de morros que configuram um panorama de tirar o fôlego. A população tem suas reservas, a suavidade e a profundidade do olhar contam muitas histórias.

Infelizmente, o fôlego também é aspirado ao vermos muitas comunidades abandonadas, assoladas pelo fogo que já passou. Aqui, vive-se uma guerra muito pouco falada, quase desconhecida ou esquecida por muitos. Além dessa configuração, é palco recorrente de ciclones e agravos de saúde por falta de acesso a saneamento básico e à nutrição adequada e um latente viver precário, de forma discrepante com outras áreas do país. A primeira vez que eu dormi em Macomia, um colega nosso me perguntou se eu havia ficado com medo durante a noite. Acredito que tenha sido uma das noites mais silenciosas e calmas que já havia tido. A noite é tão silenciosa que passava um certa tranquilidade. ‘É verdade’, me disseram, ‘a gente só sai correndo quando todos os outros saem correndo também’. Aqui, quando se fala dos ataques, há uma reação de normalizar a violência, como situação limítrofe cotidiana.

O número de deslocados e de pessoas em movimento só aumenta. As famílias são grandes, geralmente com um número expressivo de bebês e crianças. E não há como dissociar com o trabalho feito. Quando damos palestras sobre planejamento familiar, há um foco na saúde reprodutiva, mas o contexto de violência também é acompanhado pelo medo com que vivem as mães, pois em caso da necessidade de fuga, não vão conseguir levar todos os filhos. Há o medo de ter que deixar alguns para trás.

Promoção de saúde e engajamento comunitário

Busco agora compartilhar algo mais concreto sobre o importante impacto que a promoção de saúde e o engajamento comunitário têm, ainda mais nesse contexto de instabilidade. Conversando com atores da comunidade, muitos relatam que quando Médicos Sem Fronteiras (MSF) começou a atuar em Macomia, havia uma suspeita generalizada. Não entendiam como os serviços poderiam ser gratuitos, abrangentes a todos que necessitam, sem que se esperasse nada em troca. O papel da equipe representa e personifica o elo entre os nossos serviços de saúde e a comunidade, com o importante papel de dar e receber as informações necessárias. O que é MSF, quais os princípios, quais são os serviços, onde nos achar, combinado com a necessidade do povo.

Com os serviços prestados e a presença da nossa equipe todos os dias dentro dos vilarejos, nos poços de água, nas reuniões comunitárias, no porta a porta ou dentro das clínicas, fortalecemos as relações, o vínculo e a confiança com a população. Sem a sua aceitação, sem o espaço de ampliar a voz para que possam expressar quais as suas verdadeiras necessidades, os nossos serviços ficariam por certo prejudicados ou impraticáveis. Como componente imprescindível, a equipe é formada por pessoas locais, ou seja, pessoas já inseridas na comunidade, que já compartilham da cultura, das línguas, dos comportamentos e das crenças.

Em meio a um cenário de desumanização, estou responsável pelo departamento de promoção de saúde e engajamento comunitário. Temos a finalidade de proporcionar o ampliar de vozes à comunidade, que há muito já foi tirado. Como grande desafio, mas de expressiva importância, busca-se a valorização do seu já conhecimento, o incentivo das suas próprias iniciativas, vinculado a tudo que se relaciona à práticas de saúde, visando o coletivo. Através da educação em saúde, adaptadas ao contexto e realidade da população, pode-se abrir uma possibilidade para ação protagonista comunitária para o seu próprio fazer-viver-saúde.

Acredito e defendo que quando trabalhamos na base, evitamos sempre estar apagando incêndios. É a proposta para uma quebra de questões crônicas de um ser desumanizado e podado de toda sua potência. O viver-guerra configura um grito no vácuo. É aí que a busca de um início de libertação da humanidade começa: pela escuta ativa. Que seja, pelo menos, o início do como deveriam ser escutados. E que o fôlego seja recuperado, com um respiro profundo”.

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