Começando a cuidar dos sobreviventes de Ebola na Libéria

“O estigma e as difíceis condições econômicas e de trabalho somadas às sequelas de saúde associadas ao Ebola contribuem para o intenso sofrimento psíquico desses sobreviventes, que já não conseguem mais manter a esperança de retomarem suas vidas.”

Já era fim de tarde no Centro de Tratamento de Ebola em Monróvia, onde eu estava há quatro semanas como psicóloga coordenadora da equipe de saúde mental. Depois de um dia intenso de muito calor, ainda estava animada porque projetaríamos um jogo de futebol para um adolescente de treze anos fanático pelo Real Madrid. Para isso, contei com o apoio de toda a equipe para organizar eletricidade, suporte para o projetor e tudo o que precisávamos para realizar o desejo de um menino que teve que enfrentar a morte por Ebola, em menos de três semanas, dos pais e de dois irmãos. Sua irmã de 26 anos ainda estava internada, e em estado grave.

Devido à possibilidade de contaminação, nenhum material pode entrar na área de risco. Por isso, organizamos uma forma de projetar a partida do lado de fora, na tenda que serve de enfermaria para casos confirmados de Ebola. Essa ideia não é nova e nem é minha. Foi durante um dos deliciosos e divertidos encontros com Debora Noal, outra psicóloga que já participou de muitos projetos com MSF, que ela me contou como havia feito o mesmo em um Centro de Tratamento de Ebola de MSF, em Uganda, alguns anos atrás. Com o apoio da equipe de suporte psicossocial, entramos na área de alto risco para convidá-lo a ver o jogo, compramos vários cd’s e ele escolheu primeiro um documentário sobre o Real Madrid e depois, para minha vergonha, o jogo do Brasil na semifinal da Copa. Ao menos ele pôde se divertir naquela noite após quatro semanas de internação e muito sofrimento para vencer esta doença e a tristeza que o acompanhava desde que chegou.

Consegui acompanhá-lo até o momento da alta. Alguns dias depois, pude lhe dar uma nova camisa do seu time preferido, do lado de fora da zona de risco, e prepará-lo para o retorno à sua casa. No mesmo dia, em menos de uma hora, sua irmã faleceu. Decidimos dar à família algumas horas de alegria com a volta do adolescente, para depois os chamarmos para comunicar o falecimento da irmã. Não posso colocar em palavras a dor dessa família, que foi dilacerada pelo Ebola, assim como milhares de outras na Libéria, Serra Leoa e Guiné.

O funeral de um paciente com Ebola deve ser completamente diferente dos rituais comuns desta comunidade. Os familiares só podem vê-lo numa área que construímos próximo ao necrotério. Temos uma equipe para preparar o corpo enquanto o time de apoio psicossocial acompanha a família do lado de fora. De lá, partimos em comboio, levando a família para o único cemitério da cidade que tem os procedimentos seguros para o sepultamento.

No dia seguinte, minha rotina se iniciou às 7 horas com uma reunião de equipe na qual todos os departamentos informam sucintamente as principais atividades do dia. Naquele dia, eu teria de visitar algumas comunidades onde temos sobreviventes de Ebola que estavam recebendo apoio psicossocial da minha equipe, que conta com 31 aconselhadores. Desde a minha chegada em Monróvia, o projeto do Centro de Tratamento de Ebola estava sendo reestruturado. Com a diminuição dos casos do vírus, uma nova fase se iniciava, com as demandas dos mais de 500 sobreviventes apenas deste Centro de Tratamento de MSF, o maior já construído e que chegou a ter 250 leitos. Abrimos uma clínica para atendimento médico de sobreviventes de Ebola, ao mesmo tempo em que a equipe de suporte psicossocial fazia visitas domiciliares e contatava por telefone os que vivem fora da província de Montserrado (Libéria), para fazer uma avaliação de sua saúde mental, oferecer aconselhamento e informar sobre onde e como eles poderiam conseguir apoio de outras ONGs e do governo.

A partir dessas visitas, são feitos estudos dos casos e os mais graves eram vistos por mim, para que eu pudesse decidir os encaminhamentos necessários, o que poderia envolver a criação de intervenções mais eficazes. Foi assim que construímos uma nova ferramenta de intervenção na comunidade e decidimos visitar a comunidade de alguns de nossos sobreviventes, que mesmo após cinco meses de alta continuavam sofrendo com inúmeros problemas de saúde decorrentes do Ebola (dores no corpo e de cabeça, fadiga, perda da audição, problemas visuais, etc.). Além dos problemas fisiológicos, essas pessoas ainda sofriam estigma em sua comunidade e, portanto, apresentavam sofrimento mental extremo com sinais de depressão e sintomas de estresse pós-traumático. Nas sessões de aconselhamento, o estigma pode aparecer no cotidiano de diversas formas: as pessoas podem se afastar dos sobreviventes, deixando de visitar suas casas e nem mesmo se sentam para conversar com eles, apontando dedos e comentando que eles ainda estão com Ebola porque apresentam sintomas da doença. Além disso, não compram os produtos que os sobreviventes tentam produzir e vender para se sustentar. Muitos tiveram que se mudar porque os donos das casas em que moravam não os aceitavam mais. O estigma e as difíceis condições econômicas e de trabalho somadas às sequelas de saúde associadas ao Ebola contribuem para o intenso sofrimento psíquico desses sobreviventes, que já não conseguem mais manter a esperança de retomarem suas vidas.

O conjunto de fatores que impactam a saúde mental dos sobreviventes não pode ser sanado com sessões de aconselhamento. Em MSF, já sabemos da importância de ações na comunidade e grupos de discussão para sensibilizar a população, diminuindo o estigma e criando oportunidades para que novos laços de afeto possam apoiar os sobreviventes. Por isso, decidimos pela intervenção na comunidade com o apoio da equipe de promoção de saúde de MSF, que já atuava na área. Como psicóloga, e vindo de uma família que adora criar suas próprias histórias para crianças, me lembrei de uma que havia criado para minha filha quando ela tinha quatro anos de idade, e tive que recontá-la todas as noites por mais um ano. Se pude assim acalentá-la por tanto tempo, poderia também acalentar uma comunidade que sofre com o medo dessa doença avassaladora e que apenas reage estigmatizando aqueles que sobrevivem. Fizemos alguns desenhos em folhas de papel para apoiar nossa história e, munidas de mais coragem do que certeza, fomos para a comunidade. De forma sucinta a história se passa no céu onde três estrelinhas de cor amarelo, azul e vermelho crescem em meio a outras estrelas. Quando se tornam adultas e se apaixonam, as estrelas descobrem que na lei do céu só se pode casar com estrelas da mesma cor. È claro que elas haviam brincado, estudado, conversado com estrelas diversas, e haviam se apaixonado por estrelas de cores diferentes da sua. Houve um momento de discórdia com os pais-estrela. Elas choraram, ficaram caladas, brigaram, até que decidiram falar com seus pais com seus corações, explicando que o amor não tinha cor e era imenso. E com essa fala os pais permitiram que elas se casassem com as estrelas eleitas por seu coração. No dia do casamento delas, foi a primeira vez que surgiu um arco-íris no céu.

Com a ajuda de uma das aconselhadoras liberianas adaptamos a história à forma como crianças liberianas brincam de lapa, que é um jogo parecido com nossa queimada, e tiram água do reservatório juntas e para explicar as diferentes cores começamos a falar sobre como a sociedade começava a se dividir entre aqueles que sobreviveram ao Ebola e aqueles que não se contaminaram. Falamos sobre como uma sociedade pode se unir novamente usando as mesmas características que os fizeram sobreviver à guerra, se tornando solidários e se apoiando mutuamente e sobre como a Libéria poderia ter no céu um arco-íris novamente, se eles apenas se lembrarem que são um só povo com imensa capacidade de se amar e se ajudar mutuamente. Após a história, contada debaixo de uma árvore com cerca de 40 pessoas – entre eles alguns de nossos sobreviventes que lá viviam, idosos, homens, mulheres e crianças com seus olhares atentos –, sentamo-nos e fomos falar sobre medos, esperanças, dores, dúvidas. Falamos sobre vida. Ao fim, um dos líderes da comunidade disse que iria me contar outra história sobre um leão e um coelho. Ele era uma das pessoas mais resistentes no início do grupo, dizia que sua comunidade estava sofrendo e que ninguém fazia nada por eles. Porém, durante a discussão, percebeu o nosso objetivo de tentar empoderar essa comunidade novamente e falar sobre dores e medos. Saí de lá com mais uma história africana que me foi dada como presente ao fim daquele encontro. Para mim, se no primeiro dia já fomos presenteados com a capacidade de compartilhar histórias, quem sabe um dia possamos compartilhar afetos, vidas e solidariedade mais uma vez.

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