“Acho que vocês ficariam orgulhosos se vissem quão felizes fizeram essas pessoas”

Danielle Severini (primeira da direita para a esquerda) com equipe de obstetrícia em Bangladesh. Foto: Arquivo pessoal.

A advogada brasileira Danielle Severini, coordenadora de Recursos Humanos de MSF, compartilha as sensações dos primeiros dias de trabalho em Bangladesh.  

Há 30 dias, eu juntava minhas coisas para me mudar. Não vejo Bangladesh somente como um trabalho, mas como uma mudança de vida e de domicílio. Agora* minha casa é aqui.

Mas não tem sido simples. A estrada estreita de barro pela qual passamos está alagada, então o carro de Médicos Sem Fronteiras (MSF) tem que dar uma volta que corresponde a cinco vezes o tempo que levaria normalmente. Ou venho a pé mesmo, pelo barro, com as calças dobradas até o joelho. Sozinha, muitas vezes, se for antes do anoitecer.

Fiquei algum tempo sem escrever para minha família e acho que o principal motivo é não saber por onde começar: se começo dizendo que está tudo bem, que estou segura, que tenho ar condicionado no quarto, abajur e internet. Ou se começo descrevendo as coisas tristes que vejo todos dias, mas que insisto em “pintar de cor de rosa”, criando uma positividade (dessas quase tóxicas) na minha própria cabeça.

Mas a verdade é que há dias que eu acho que essa realidade incomoda e dói mais do que eu assumo querer sentir. E para não expor minha “fraqueza” e vulnerabilidade, eu me fecho silenciosa em sentimentos e pensamentos.

Vejo cachorros de rua doentes, se coçam o tempo todo, têm marcas no couro da coceira, de briga… Alguns com olhos opacos e a língua que não para dentro da boca. Não há tratamento para o lixo, então os descartes são amontoados em muitos lugares, esperando serem queimados.

O contexto é, pelo menos em regra, seguro. Ultimamente, foram ouvidas mais bombas explodindo na fronteira com Mianmar, de onde não estamos relativamente próximos. Estima-se que ocorreu provavelmente em uma área chamada “No Man’s Land” (Terra de Ninguém, em inglês). As pessoas tentam atravessar a fronteira e encontram minas. No último sábado*, o coordenador saiu às pressas, devia ser umas 8 horas da noite, pois sete pessoas haviam sido atingidas por uma bomba e deram entrada no nosso hospital.

No dia a dia, eu venho percebendo o tamanho desse projeto de MSF. O hospital atende na clínica cerca de 500 pessoas por dia e tem mais de 100 leitos. Hoje, no meio de um dia tenso, fui convocada para entregar certificados em um curso cujo objetivo é compartilhar os princípios de MSF para os novos integrantes da equipe.

Danielle (primeira à esquerda) com os participantes do curso. Foto: arquivo pessoal.

Na ida para o local do curso, passei por alguns quilômetros do gigante acampamento de refugiados Rohyinga**. Uma cerca de metal e arame farpado separa o acampamento da cidade. Mas consegui ver as crianças brincando perto de suas barracas, pareciam alegres. Era o acampamento 1.

O lugar do curso, do outro lado da rodovia, é lindo, verde e com flores de hibisco vermelho. Tirei muitas fotos com os participantes do curso. E me senti bem, um suspiro no meio de tamanha crise humanitária. Entendi que, mesmo que o trabalho humanitário não seja sempre como idealizamos, ele gera um grande impacto na vida das pessoas.

Assista: Seis anos da saída em massa do povo Rohingya de Mianmar

Do lado de fora da cerca, a população bengali trabalha, atua no hospital e atende a comunidade. Mas, mais do que isso, eles também podem oferecer a si próprios uma vida melhor, e nós temos a obrigação de trabalhar para que essas pessoas tenham acesso a cuidados essenciais de saúde, serviços que deveriam estar ao alcance de todos, em todos os lugares do mundo.

Danielle Severini (terceira da direta para a esquerda) com os colegas profissionais de Médicos Sem Fronteiras em Bangladesh. Foto: Arquivo pessoal.

Hoje eu representei não só aqueles que dedicam recursos financeiros para os projetos de MSF, mas também doadores de tempo e de desejos por um mundo melhor. Vocês estavam comigo lá e acho que ficariam orgulhosos se vissem quão felizes fizeram essas pessoas.

 

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*Texto escrito em 21 de setembro de 2022.
**O acampamento de refugiados de Cox’s Bazar, em Bangladesh, é o maior do mundo, com quase 1 milhão de pessoas.

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