A força dos laços comunitários: “Repartir o pão é levado muito a sério aqui”

Foto: Arquivo pessoal

A psicóloga de MSF Júlia Lobo compartilha experiências marcantes durante trabalho no projeto em Nablus, na Palestina.

Casas cor de areia. Areia de muitas cores. Cinza cor de pedra.
Pedra cor de muro. Muro. Bandeira. Muro. Colina.
Crianças correndo entre as casas cor de areia.

Escrevi esses versos observando a estrada quando estava a caminho do projeto em que atuei. Olhando pela janela do carro na estrada entre Jerusalém, onde fica a coordenação do projeto, e Nablus, onde fica a clínica de saúde mental. Foram tantos os elementos da minha atuação na Palestina que me marcaram que fica difícil colocar em palavras, mas vou tentar.

Queria poder dizer que minha jornada começa pela acolhida amorosa da população local. Por meus colegas de trabalho nacionais terem feito com que me sentisse em casa. Mas, infelizmente, ela começa logo no aeroporto, durante minha chegada, cuja dinâmica deixa claro que esse é um território cheio de tensões.

A rotina do povo palestino é não saber quantas horas ficará em postos de controle, se conseguirá atravessar a fronteira, se terá permissão de ir negada ou não. A vigilância é constante, atravessada por controles militares, muros, operações na madrugada, estradas que literalmente do dia para a noite mudam de status.

O meu principal trabalho como psicóloga, como membro da equipe do projeto, foi atender pacientes que sofrem de questões moderadas a severas de saúde mental. Na minha jornada como psicóloga com populações em situação de vulnerabilidade, não raramente ouço pessoas dizendo que as pessoas se “acostumam” com a violência rotineira. Eu tenho um outro ponto de vista: o que acontece é que a “armadura” vai ficando maior, mais pesada, mas as consequências do estado de alerta constante, do estresse crônico, do luto interditado rotineiramente vão adoecendo as pessoas, e isso fica muito evidente no trabalho com saúde mental. Se adaptar a um ambiente conturbado cobra seu preço. Diante de tanta adversidade e negligência, os laços comunitários e familiares são um grande alicerce. Nesse sentido, eu lembrei muito de casa: repartir o pão é levado muito a sério aqui. Fortalecer e apoiar o acesso a recursos comunitários é um dos trabalhos que vejo as assistentes sociais do projeto desempenharem, e que é essencial para oferecer cuidados de saúde mental de qualidade. Não é fácil, principalmente em um contexto pós-pandemia e pós-corte de orçamento de diversas organizações que atuavam na região. Não é fácil, mas raramente o trabalho humanitário é. Seguimos, então.

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