Rotas de sobrevivência: histórias de   mulheres que sobreviveram à   travessia do Mediterrâneo 

No Dia Internacional das Mulheres, compartilhamos os relatos de mulheres que precisaram cruzar a rota de migração marítima mais mortal do mundo.

“No minuto em que eu estivesse sozinha, eles teriam me violentado” – Adanya, 34 anos, de Camarões.

“Na Líbia, eu dormia embaixo de caminhões e ônibus porque não tinha dinheiro” – Afia, 24 anos, de Gana.

“Eles disseram que se eu fizesse sexo com eles, eles poderiam me levar [para o outro lado do mar] sem pagar” – Linda, 19 anos, da Guiné.

As experiências relatadas acima por essas três sobreviventes são tristemente comuns entre mulheres e homens resgatados pelo navio de Médicos Sem Fronteiras (MSF), o Geo Barents, no Mediterrâneo Central.

 

Para marcar o Dia Internacional das Mulheres, em 8 de março, “Rotas de sobrevivência” busca amplificar as vozes das mulheres resgatadas no mar.

Por meio de retratos e testemunhos, as sobreviventes descrevem as circunstâncias que as forçaram a atravessar o Mediterrâneo Central, a rota de migração marítima mais mortal do mundo. As histórias são acompanhadas por depoimentos de profissionais de MSF, que explicam suas motivações para o trabalho de busca e resgate e a conexão que sentem com os sobreviventes no Geo Barents.

Qualquer pessoa que atravessa o mar para escapar de uma situação perigosa ou para buscar uma vida melhor está em uma posição vulnerável, mas, ao longo das rotas, as mulheres enfrentam fardos adicionais da discriminação de gênero e, muitas vezes, da violência baseada em gênero.

As mulheres representam apenas uma pequena proporção – cerca de 5% – daqueles que fazem a perigosa travessia da Líbia para a Itália.

Mulheres participam de uma sessão de conscientização e discussão sobre violência contra as mulheres liderada pela psicóloga de MSF na sala da clínica Geo Barents. Foto: Mahka Eslami/MSF

A bordo do Geo Barents, as sobreviventes relatam frequentemente práticas como casamento forçado ou mutilação genital (afetando a si mesmas ou suas filhas) como uma das razões pelas quais foram forçadas a deixar suas casas. As mulheres também enfrentam riscos específicos durante suas viagens. As equipes médicas de MSF relatam que as mulheres são proporcionalmente mais propensas a sofrer queimaduras de combustível no decorrer da travessia do Mediterrâneo, pois tendem a ser colocadas no meio do barco, onde acredita-se ser mais seguro. Muitas sobreviventes resgatadas também relatam ter sofrido várias formas de violência, incluindo psicológica e sexual, e a prostituição forçada.

“Mulheres, não aceitem mais a violência” – Decrichelle, camaronesa.

 

Entre as sobreviventes está Decrichelle, que fugiu, com sua bebê, de um casamento forçado com um marido violento. Quando seu primeiro marido morreu em um acidente de carro, a família forçou-a a se casar com seu cunhado, um homem que bebia muito e batia nela. Ela teve dois abortos espontâneos como resultado dessa violência.

Engravidou pela terceira vez e deu à luz uma menina. Quando a criança tinha seis meses, após sofrer mais uma violência do marido que a levou ao hospital, ela decidiu fugir de casa. Com o incentivo de uma amiga, partiu para a Nigéria com sua bebê, depois para o Níger, depois para a Argélia.

“Eu quero estar em um lugar onde eu possa viver como uma pessoa comum da minha idade. Quero poder dormir à noite”
– Decrichelle, sobrevivente resgatada no Mar Mediterrâneo.

Quando chegaram ao deserto, a criança adoeceu, e Decrichelle não pôde fazer muito pela filha porque não tinha acesso a cuidados de saúde ou remédios. A bebê morreu, e a mãe precisou deixá-la para trás antes de continuar a viagem para a Argélia: “Uma tristeza imensa e inconsolável”, ela relata.


“Eu queria estar aqui com minha filha. Dói em mim pensar que estou segura e a deixei no deserto”, Decrichelle desabafa.

Uma mulher, com quem viajou desde a Líbia, trança o cabelo de Decrichelle. As duas ficam no convés superior do navio com outras mulheres e crianças resgatadas. Foto: Mahka Eslami/MSF

Decrichelle tentou atravessar o mar uma vez, mas foi presa e enviada para a prisão. Foi libertada em seguida e levada de táxi a uma casa de prostituição. Alguns amigos camaroneses a ajudaram a escapar. Durante seis meses, Decrichelle viveu nos “campos” (prédios abandonados ou grandes espaços ao ar livre perto do mar, onde os traficantes reúnem os migrantes) antes de juntar dinheiro para pagar por outra travessia.

“Eu tenho que ser corajosa pelos meus filhos” – Bintou, costa-marfinense.

Mãe de quatro filhos, Bintou decidiu fugir porque, após a morte de seu marido, seus sogros decidiram tirar seus filhos dela para forçar sua filha mais velha a se casar. Ela então levou suas duas filhas mais velhas e partiu antes que fosse tarde demais, deixando uma menina e um menino para trás.

Quando chegaram à Líbia, foram colocadas na prisão. “Na Líbia, porque não há governo, todo mundo é policial. Mesmo quando eles te pegam, você não sabe quem é a verdadeira polícia. Eles nos colocaram em uma pequena cabana. Homens, mulheres, todos juntos. Foi muito difícil. Rapazes quebraram a porta, e nós fugimos. ”

“Não quero que minhas filhas se casem à força como eu. Não quero que minhas filhas tenham a mesma vida [que eu tive] ” – Bintou, da Costa do Marfim, sobrevivente resgatada no Mar Mediterrâneo.

“Quando saí da prisão, comecei a trabalhar na casa de um homem. ” O homem não pagou pelo trabalho. Ele sabia que elas queriam ir embora.

Um dia, o homem as levou para um barco para que pudessem navegar para longe. Era a primeira vez delas.

Bintou não vê seus outros dois filhos há dois anos, desde que deixou a Costa do Marfim.


“No futuro, eu quero que meus filhos sejam alguém. Quando eu era criança, vivi muitas coisas ruins. Minha mãe era cega. Ela teve 15 filhos, mas apenas três sobreviveram. Eu era a única garota. Eu me casei à força. Não fui à escola. Quero colocar minhas filhas na escola. Não quero que minhas filhas se casem à força como eu. Não quero que minhas filhas tenham a mesma vida [que eu tive].”

“O trauma da Líbia já começa quando entramos no país” –  Christelle, camaronesa.

Mãe de três filhos, Christelle se separou do marido após sofrer violência doméstica e começou a trabalhar em uma microempresa que vendia bananas. Um dia, a caminho do trabalho entre Maroua e Kousséri, nos Camarões, ela foi sequestrada por homens do grupo islâmico Boko Haram, que a levaram para a Nigéria. Christelle conseguiu escapar com a ajuda de uma mulher e partiu para a cidade de Maiduguri, nordeste do país.

Lá, trabalhou em um restaurante onde, após seis meses, conseguiu juntar dinheiro para partir com um grupo em direção à Líbia.

A viagem da Argélia para a Líbia foi muito traumática para Christelle: “Na chegada à Líbia, durante a noite, as pessoas que estavam nos guiando nos violentaram. Nós também fomos alvos de tiros, nos espalhamos, nos perdemos e acabamos com duas crianças que não falavam francês e estavam sem suas mães, que haviam desaparecido. Passamos três dias lá, procurando as mães das crianças, antes de deixá-las sozinhas. Quem pode cuidar de crianças desconhecidas? O trauma da Líbia já começa quando entramos no país.”

“Quando chegamos à Líbia depois de duas semanas na estrada, nos prenderam e nos colocaram na cadeia. Eu não tinha ninguém para ligar para trazer dinheiro para me libertar”.

Na chegada à Líbia, durante a noite, as pessoas que estavam nos guiando nos violentaram.”

Christelle, 32 anos, camaronesa.

“Tentei cruzar [o Mediterrâneo] duas vezes. Da primeira vez, tínhamos saído havia menos de trinta minutos quando os líbios nos prenderam, no meio da noite, e imediatamente nos colocaram na cadeia. A segunda vez foi a boa.”

“Eu quero dizer às mulheres: não é culpa sua. Você é exatamente a mesma pessoa que era antes. Você é ainda mais forte”.

– Lucia, coordenadora-geral adjunta do projeto, que também é uma sobrevivente de violência sexual.

Além das dificuldades que as mulheres enfrentam nas rotas de migração e na Líbia, as equipes de MSF a bordo do Geo Barents muitas vezes testemunham os fortes laços que se desenvolvem entre as sobreviventes no convés feminino. As mulheres se reúnem para apoiar umas às outras com tarefas diárias e cuidados com as crianças.

“Eu acho que tem sido muito comovente ver essas mulheres, que realmente escaparam do que eu vivenciei por uma hora na minha vida. Vê-las em sua luta, em sua força, em sua esperança, [elas não param] essa batalha”, Lucia acrescenta.

Lucia, coordenadora-geral adjunta do projeto de MSF. Foto: Nyancho NwaNri/MSF

Nejma, mediadora cultural a bordo do Geo Barents, explica seu vínculo com sobreviventes como Decrichelle: “Eu sou africana, do Oriente Médio. Sou mãe. Eu sou uma mulher. Há tantas coisas que nos unem. Talvez também o fato de que eu tive que fugir. Essa é uma grande parte desse vínculo. Acho que isso me ajuda a entender em que situação as pessoas estão no momento em que as encontramos; é um entendimento que os livros nunca poderiam me ensinar.”

Como refugiada, Nejma compartilha o que a ajudou a seguir em frente nos lugares para onde fugiu. “[Os sobreviventes precisam] manter a força… uma vez que desembarcam na Europa, não é o fim da jornada”, diz ela.

Nejma, mediadora cultural de MSF, fala com os sobreviventes durante uma operação de resgate do Geo Barents no dia 7 de janeiro de 2023. Foto: Nyancho NwaNri

“É um desafio diferente: não deixar de ser quem eles são, de nunca esquecer quem eles são e de onde eles são. Ter muito orgulho de suas origens. Porque você não saberá para onde ir, se não souber de onde veio. E quero que meus irmãos e irmãs da África e do Oriente Médio, ou de qualquer lugar, se lembrem de quem são. Isso tornará mais fácil seguir em frente.”

Mulheres que acabaram de ser resgatadas pela equipe do Geo Barents celebram com grupo que havia sido resgatado no dia anterior. Mahka Eslami/MSF