Vacinas e medicamentos: bens comuns ou artigos de luxo?

Vacinas e medicamentos: bens comuns ou artigos de luxo?

As crises de acesso a medicamentos, vacinas e outros bens essenciais de saúde prolongam pandemias, agravam crises humanitárias, e, acima de tudo, revelam em que pontos o sistema de inovação médica precisa evoluir para funcionar de maneira justa e equitativa.

Do ponto de vista da saúde pública, são inovações que não chegam para quem mais precisa delas e não cumprem seu propósito. A pergunta que o sistema de propriedade intelectual precisa responder é: “Os meios necessários para salvar populações inteiras serão tratados como bens comuns ou como artigos de luxo?”

Foi para responder a esta pergunta que o parlamento brasileiro aprovou, por ampla maioria, em ambas as Casas, o PL 12/21, que agora aguarda sanção presidencial até a próxima quinta-feira, dia 2 de setembro. O PL 12/21 visa exatamente agilizar o uso da licença compulsória durante emergências como a de COVID-19.

A licença compulsória existe há mais de 100 anos nas regras de comércio internacional e tem sido usada com sucesso, tanto em países ricos como naqueles em desenvolvimento. Serve para impedir que uma patente se torne uma barreira ao acesso a um conhecimento relevante para o interesse público.

Na prática, substitui um regime de exclusividade, quando só o titular da patente pode comercializar um medicamento ou vacina, por um regime de concorrência com outros fornecedores qualificados, em que há mais transparência, economia e sustentabilidade para as políticas de vacinação e tratamento.

Com o aperfeiçoamento que foi aprovado pelo Congresso Nacional e só aguarda a sanção presidencial, a licença compulsória passa a acontecer por meio de uma lista ampla de produtos essenciais, montada com participação da sociedade civil, tem seus ritos balizados por prazos bem definidos e inclui garantias de que todas as informações e conhecimentos relevantes serão compartilhados.

Fato é que, se sancionada integralmente, a nova lei rapidamente trará também benefícios na importação de medicamentos genéricos, que hoje o Brasil está proibido de comprar. Sem contar que a Organização Mundial de Saúde (OMS) possivelmente ampliará a lista de tratamentos recomendados e, com o uso da licença compulsória, o Brasil estará bem-posicionado para fazer melhores negociações de compra.

Isso vale para vacinas biossimilares, uma possibilidade não tão distante assim, pois, pelo menos seis produtores de diferentes países já anunciaram ter condições técnicas de reproduzir pelo menos uma das vacinas atualmente em uso. Por fim, cabe ressaltar que a próxima geração de vacinas contra a COVID-19 estará mais facilmente disponível em países onde as barreiras de propriedade intelectual estiverem flexibilizadas.

A resposta à COVID-19 apenas começou. Muito ainda precisa ser feito para integrar estratégias regulares de vacinação, testagem e tratamento na rotina dos sistemas de saúde. A licença compulsória precisa ser pensada como um pilar de sustentação dessas estratégias de saúde.

A licença compulsória não prejudicaria os investimentos das empresas que inovam, pois elas seriam compensadas. Não há riscos para a saúde financeira de empresas como Pfizer e Moderna, que receberam, respectivamente, U$ 800 milhões e U$ 955 milhões em investimentos públicos para “suas” pesquisas em vacinas e que têm faturamento estimado em U$ 26 bilhões (Pfizer) e U$ 19,2 bilhões (Moderna).

Mais razoável seria a preocupação com o orçamento do SUS, considerando-se que o gasto com vacinas de COVID-19 já supera em muitas vezes o gasto regular total do Programa Nacional de Imunização (PNI).

Estamos correndo contra o tempo; e os olhos do mundo se voltam agora para o Brasil. Flexibilizar a proteção das patentes num momento como este é perfeitamente legal, legitimo e racional também do ponto de vista econômico por estabelecer o princípio liberal da concorrência como regra.

Apesar de anúncios de parcerias de produção e de doações, ainda estamos reféns da desigualdade global na distribuição de vacinas, o que vai se intensificar com a necessidade das doses de reforço, reféns de aumentos de preço e de um controle excessivo da “fórmula” das vacinas por poucas grandes empresas, mesmo elas tendo absorvido esse conhecimento de instituições e investimentos públicos.

A origem de tantos desequilíbrios está na forma como as regras de propriedade intelectual estão desenhadas e aplicadas. Fato reconhecido por mais de 100 países, dos EUA à China. Há consenso de que mais compartilhamento de conhecimento salvará mais vidas. Com a sanção do PL12/21, o Brasil pode liderar pelo exemplo.

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