Sem dinheiro, sem cuidados

O retrocesso alarmante nas taxas de utilização cobradas aos pacientes

Dra. Mit Philips, Assessora de Política de Saúde, Departamento de Análise, Médicos Sem Fronteiras (MSF), Bruxelas.

Em um centro de saúde do Malaui, uma mãe recebe apenas metade das pílulas de que precisa para tratar seu filho contra a malária, pois não pode pagar o valor total (equivalente a 30 reais), colocando a vida da criança em risco. Na República Centro-Africana (RCA), uma mulher grávida é instada a pagar o equivalente a 9 reais por um teste de HIV, mas não pode arcar com isso. Quando enfrenta complicações durante a gravidez, recebe prescrições de fluidos que custam 6 reais por dia. Para arcar com as taxas, ela pede dinheiro aos seus vizinhos. Agora, ela paga o que deve a eles aos poucos, mas ainda está em dívida. Um refugiado na Jordânia parou o tratamento de uma doença não-contagiosa porque não pode pagar as taxas (76 reais por consulta). Em uma área rural da República Democrática do Congo (RDC), uma mãe e seu bebê não podem deixar o hospital até pagarem 126 reais por uma cirurgia cesariana de emergência que salvou suas vidas.

Embora esses sejam apenas alguns exemplos vistos por MSF, milhões de pessoas enfrentam situações como essas todos os dias ao tentarem ter acesso a cuidados de saúde. Impedidos de buscar cuidados médicos, os doentes simplesmente ficam em suas casas e aguardam uma morte misericordiosa. Outros adiam a ida a instalações de saúde até que sua condição piore, a ponto de, muitas vezes, ser tarde demais para buscar ajuda. Muitas famílias desesperadas são obrigadas a tomar empréstimos ou a vender seus pertences para pagar pelos serviços, levando a um futuro empobrecimento dos pacientes. Os profissionais de saúde, que muitas vezes carecem de remuneração adequada, prescrevem tratamentos inadequados ou desnecessários com base no que eles pensam que os pacientes podem pagar e no que gerará o maior lucro. Nos surtos epidêmicos, o efeito impeditivo das taxas de utilização enfraqueceu a vigilância e a resposta, à medida que os pacientes morrem na comunidade e os casos não são informados.

Ao longo da última década, muitos países abordaram essas questões por meio da transição para cuidados de saúde gratuitos, seja para toda a população ou para grupos específicos, como mulheres grávidas, crianças e pessoas com certas doenças. No entanto, na Guiné, na RCA, na Jordânia, na RDC e em outros países, os pagamentos diretos por parte dos pacientes no local de oferta de cuidados continuam a ser exigidos dos grupos mais vulneráveis, incluindo refugiados, populações deslocadas e pacientes com HIV, TB, doenças não transmissíveis e malária. De forma problemática, as taxas de utilização estão sendo expandidas ou (re)introduzidas em países que anteriormente removeram essas barreiras financeiras para pacientes, como o Afeganistão, Moçambique e Malaui. Os recentes cortes de financiamento internacional para a saúde também ameaçam a iniciativa de saúde gratuita para mulheres e crianças de Serra Leoa.

Os cortes nos subsídios internacionais de saúde estão colocando os países sob pressão cada vez maior para depender de recursos domésticos para manter e expandir a cobertura de saúde. Isso resultou na (re)introdução de taxas de utilização como um método de mobilização de recursos domésticos (DRM), apesar de esmagadoras evidências de que os pagamentos de custos adicionais não são apenas incapazes de gerar receita suficiente, mas também têm efeitos prejudiciais para a população, como limitar o acesso aos cuidados, agravar a pobreza e "punir os pobres"*. Consultores e assessores estão convenientemente ignorando essa evidência, incluindo a ineficiência das isenções individuais de "pobreza" (ou seja, se uma pessoa se qualifica como indigente). Além disso, as agências internacionais, como o Banco Mundial, a OMS, os doadores e os governos nacionais estão falhando em manter seus compromissos anteriores para apoiar a eliminação das taxas de utilização, com consequências negativas para as três dimensões da Universal Health Coverage (UHC).** A falha em eliminar as taxas de utilização traz um alto custo humano e prejudica a credibilidade dos compromissos para alcançar a cobertura universal de saúde até 2030.  

Qualquer envolvimento sério para levar essa cobertura da teoria para a realidade deve começar com a remoção dos pagamentos diretos dos pacientes. Isso implica recursos dedicados para pagar serviços em vez de os pacientes assumirem o custo. A abolição efetiva das taxas de utilização exigirá a remuneração dos profissionais de saúde para compensar a perda de receita dos pagamentos dos pacientes e o reforço de serviços e suprimentos para lidar com o aumento da demanda.

Em 2005, as taxas de utilização foram reconhecidas como "um mal desnecessário"*** e, até 2009, todas as partes interessadas foram convocadas a "atuar liberando os cuidados de saúde nos países pobres"****.  Quase uma década depois, podemos apenas destacar as intoleráveis consequências dessas práticas nocivas. Fazemos um apelo aos líderes da saúde global, incluindo os governos nacionais, para que imponham e apoiem as políticas de atendimento gratuito existentes e removam as taxas de utilização das estratégias de financiamento de saúde como prioridade. Para evitar a continuação da falta de acesso aos serviços essenciais e dificuldade financeira desnecessária, a tributação de pessoas doentes deve chegar ao fim.
 

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* Declaração da Dra. Margaret Chan, ex-diretora geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2009.
** As três dimensões da Cobertura Universal de Saúde são as taxas de utilização geral dos serviços; o alcance e a qualidade dos serviços prestados; e proteção contra dificuldades financeiras. Para obter mais informações sobre este tópico, consulte: http://www.who.int/health_financing/strategy/dimensions/en/
*** Sophie Witter. Um mal desnecessário? Taxas de utilização para cuidados de saúde em países de baixa renda. Save the Children, janeiro de 2005.
**** "Seu dinheiro ou sua vida" Os líderes atuam agora para salvar vidas e libertar os cuidados de saúde nos países pobres? ", 2009. Produzido sob a liderança da Oxfam e aprovado por 60 organizações, incluindo MSF.
 

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