COVID-19 na África Ocidental: “Vamos nos preparar para uma corrida de longa distância”

COVID-19 na África Ocidental: “Vamos nos preparar para uma corrida de longa distância”

O médico nigeriano Chibuzo Okonta trabalha com Médicos Sem Fronteiras (MSF) desde 2005. Ele integrou equipes médicas de emergência em vários países da África Ocidental. Aqui, Chibuzo convida os médicos do continente africano a se apropriarem da narrativa da pandemia atual e a tirarem proveito da experiência da África com epidemias anteriores, a fim de que possa ser dada uma resposta adaptada ao novo coronavírus.
 
“Já se passaram quase três meses desde que o primeiro caso de COVID-19 foi confirmado na África. Hoje, as curvas de contaminação estão muito mais achatadas do que na França, na Itália ou nos Estados Unidos. Diferentemente do que está acontecendo em outros lugares e, ao contrário do que foi previsto para nós, a epidemia aqui não ‘explodiu’, os sistemas de saúde não estão sobrecarregados e a mortalidade parece ser menor do que era esperado.

Mas isso não é motivo para declarar vitória. É, na verdade, um alerta para nos prepararmos para uma corrida de longa distância.

Para sobreviver a essa maratona, médicos, pesquisadores e todos os demais envolvidos na resposta no continente devem se apropriar da narrativa da luta contra a pandemia de COVID-19 na África e prover evidências para racionalizar e não deixar que a emoção tome conta do debate. Não vamos deixar nem o pânico, nem a fantasia de um excepcionalismo protetor do continente assumir o protagonismo. Em vez disso, devemos nos preparar para dar respostas econômicas, em termos financeiros, e eficientes, adaptadas às condições locais.

Re-ancorando o debate nas comunidades locais
No dia 18 de março, o médico Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS, pediu à África que “acordasse” para enfrentar a pandemia. Uma sucessão de discursos alarmistas sobre o nível de preparação da África se estendeu para a mídia internacional. No entanto, a resposta à COVID-19 na África não pode ser reduzida a um único território; afinal, a África é constituída de 54 estados, cada um com um nível muito diferente de preparação.
 
O novo coronavírus sem dúvidas fará vítimas em nossos países, mas, paradoxalmente, nossos sistemas de saúde – geralmente considerados frágeis – podem ser mais resistentes ao lidar com esse choque. A maioria dos nossos profissionais de saúde concluiu seus estudos médicos e depois praticou a arte da cura em ambientes endêmicos e carentes de recursos. Eles aprenderam e desenvolveram habilidades e conhecimentos, diferentemente de outros colegas. Por exemplo, estratégias preventivas básicas, frequentemente aplicadas no continente, não são novas para a nossa comunidade. Durante uma epidemia de febre de Lassa (uma ocorrência comum na África Ocidental, que recentemente afetou Serra Leoa e Nigéria), as regras de distanciamento físico e isolamento foram as mesmas. Nós aprendemos que as informações e os protocolos corretos, trabalhados junto à população e não impostos a elas, quebrarão as cadeias de transmissão mais rapidamente.
 
Não há monopólio do conhecimento! Certamente, faltam unidades de terapia intensiva e leitos, além de respiradores, nos nossos sistemas de saúde. Eles com certeza não dispõem de um número suficiente de profissionais de enfermagem qualificados para tratar pacientes que precisarão de oxigênio. Mas desenvolvemos resiliência, habilidades e conhecimentos por meio da resposta a emergências e epidemias. Reconhecemos nossa fragilidade, mas isso nos dá mais oportunidades de inovação. Nossos sistemas de saúde estão cientes de seus limites e conscientes das capacidades locais, mas, diante de uma emergência como essa, podemos ampliar nossa capacidade de resposta e fazer a triagem de pacientes da melhor maneira. Sabemos que não conseguiremos salvar a todos.

Trabalhar junto às populações
Acima de tudo, devemos ter em mente que é fundamental trabalhar com as pessoas. Elas devem fazer parte do debate e da ação em todas as etapas, seja na prevenção, na preparação ou no atendimento. Não se trata só de projetar e implementar uma resposta, que envolve hábitos de autoproteção, e só se aplica a pequenos grupos urbanos de classe média. As escolhas devem ser feitas em conjunto.

A questão do confinamento deve ser abordada por esse ângulo. As medidas de restrição adotadas desde cedo pelos nossos Estados nos permitem retardar a progressão da pandemia e nos preparar melhor. No entanto, elas não vão conter a contaminação, sobretudo em nossos bairros densamente povoados ou em espaços compartilhados de convivência. Além disso, elas terão um impacto econômico e social muito pesado sobre as pessoas que dependem de trabalhos diários para sobreviver.
 
Portanto, é essencial que essa abordagem seja revista, para que nossos concidadãos sobrevivam e que todos possam reforçar as medidas básicas de prevenção: lavar as mãos regularmente, ter boas práticas de higiene ao espirrar ou tossir e respeitar o distanciamento físico, além do uso de máscaras. As populações devem receber ajuda, elas devem ter os meios necessários para conseguirem implementar as medidas de proteção. Na Costa do Marfim, por exemplo, as equipes de MSF iniciaram a produção local de máscaras de pano para distribuir às pessoas. “Eu te protejo, você me protege”: assim, também incentivamos a solidariedade local para responder à pandemia.

Informar e conscientizar é a chave para combater uma epidemia. É um direito das populações e um dever nosso, como médicos e pesquisadores. Precisamos estabelecer uma relação de confiança com os nossos conterrâneos. Isso significa que temos o dever de sermos transparentes sobre o que estamos fazendo, ainda mais aqui, vendo a velocidade com que as notícias falsas circulam.

Sim, vacinamos populações de maneira preventiva. Sim, participamos de ensaios clínicos sobre tratamentos e vacinas. Nós fazíamos isso antes da COVID-19 e continuaremos fazendo depois – assim espero –, porque é um ato de saúde pública essencial para proteger as populações de doenças como sarampo, meningite ou Ebola.

Por exemplo, a vacina MenAfrivac, contra a meningite A, foi introduzida em 2009, após vários anos de ensaios clínicos. As campanhas de vacinação em massa são realizadas há 10 anos e não houve mais nenhum surto de meningite A na região desde então. Alguns dos nossos leitores talvez sejam jovens demais para lembrar, mas a maioria deles se beneficiou disso.  

Vamos ter um canal de diálogo direto com as populações, para evitar qualquer desconfiança. Incentivemos a solidariedade global a ir contra qualquer rejeição do outro ou qualquer discriminação, principalmente quando se trata do acesso a tratamento e vacinas, caso estejam disponíveis. Se queremos que o maior número possível de pessoas complete esta corrida a distância, isso é mais do que necessário.

Médicos Sem Fronteiras (MSF) é uma organização humanitária internacional que leva assistência médica de emergência a pessoas afetadas por conflitos armados, epidemias, desastres naturais e excluídas do acesso à saúde. MSF trabalha na Nigéria desde 1996 e atualmente nossas equipes estão em Benue, Borno, Ebonyi, Jigawa, Rivers, Sokoto e Zamfara.

 

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