A atual crise de recursos humanos na área de saúde da África

Erwin Lloyd, diretor da Unidade Médica do Brasil (BRAMU), fala sobre dificuldades de encontrar profissionais no continente

A atual crise de recursos humanos na área de saúde da África

Para aqueles que trabalharam no continente africano é de concordância geral que os recursos humanos na área médica são um dos principais problemas que o continente enfrenta. Nos últimos anos, vimos várias crises na maior parte dos países da África. Guerra e insurgência, corrupção, epidemias e surtos, migração (econômica ou forçada), fome e desastres naturais agravaram as situações que pessoas vulneráveis estão enfrentando. Embora existam agentes trabalhando para melhorar vidas e fornecer assistência médica emergencial e intermediária, é preciso haver planejamento e investimentos de longo prazo e contingência para fornecer programas sustentáveis de assistência médica. Houve alguma melhora nos indicadores médicos de alguns países, mas, em geral, a questão da prestação de cuidados de saúde de (baixa) qualidade foi equiparada à fraca disponibilidade de recursos humanos na área médica.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a necessidade de os governos abordarem a questão da falta de recursos humanos no campo da medicina¹ , mas é preciso haver um olhar mais amplo sobre as questões de saúde no continente. Os governos também devem buscar garantir a provisão constante e sustentável de estoques de medicamentos, suprimentos, equipamentos e também de treinamentos essenciais. Quando trabalhei em alguns países no continente africano, supostamente devíamos trabalhar com a estrutura municipal de saúde, mas, devido ao baixo apoio do governo local, nos centros de saúde não havia estoques médicos e de suprimentos nem para tratar o problema mais básico de saúde. Os profissionais da área médica, por sua vez, além de não receberem seus salários de modo regular, não voltavam ao trabalho porque não tinham nada a oferecer aos pacientes que chegavam ali diariamente.

A outra questão é que a maioria das organizações não-governamentais “roubaria” profissionais médicos, oferecendo salários mais altos, melhores benefícios e horas de trabalho em comparação àqueles que trabalham em instituições governamentais. Isso foi bastante comum durante a crise do Ebola, em Serra Leoa, onde muitas ONGs se estabeleceram durante e após o surto. Isso é esperado e, até certo ponto, natural para essas ONGs, visto que são financiadas por doações e, supostamente, devem oferecer “assistência de sucesso” com base nos indicadores de cada projeto. No entanto, quando os recursos financeiros são limitados e os contratos com as ONGs terminam, os profissionais ficam sem meios sustentáveis de renda, o que mostra um perigoso ciclo de respostas reativas e de declínio dos sistemas.

Então, como lidamos com essa questão?

Os governos devem ter um melhor planejamento para a saúde. As organizações internacionais devem apoiar os governos na realização de metas a curto e longo prazo que abordem os vários aspectos dos cuidados de saúde: financiamento, planejamento de resposta à desastres e emergências, cuidados básicos e secundários de saúde, benefícios a profissionais da área médica, treinamentos e ações para a redução de impostos ou isenção para estoques e suprimentos médicos. Investimentos devem ser feitos em escolas de medicina e enfermagem a fim de encorajar que jovens estudem em cursos da área médica. Em locais onde a insegurança é um problema, esforços devem ser realizados a fim de garantir a segurança dos profissionais de medicina.

Alguns governos também são difíceis de lidar. Muitas vezes, respostas de emergência de várias organizações internacionais chegam atrasadas devido à negação de tais governos sobre a necessidade de assistência e suporte. Dificuldades na obtenção de vistos e burocracias na obtenção de licenças de importação para medicamentos essenciais e suprimentos são apenas algumas das questões que as organizações enfrentam durante os desastres.

MSF sempre enfrentou dificuldades em encontrar profissionais médicos em países devastados por guerras e desastres. É crucial para nós termos profissionais médicos a fim de oferecermos a qualidade de assistência que desejamos aos pacientes que recebemos todos os dias. Na maioria dos contextos, trabalhamos com o Ministério da Saúde, oferecendo nosso suporte técnico e experiência em diversas áreas da medicina. O treinamento é um grande componente da colaboração, além de garantir o sentimento de que o projeto “pertence” à equipe. MSF reconhece a necessidade de inclusão do Ministério da Saúde no processo de prestação de assistência à população.

Organizações não-governamentais devem trabalhar com os Ministérios da Saúde. Elas devem reconhecer que não se trata de uma competição na provisão de cuidados de saúde, mas sim de um relacionamento complementar ao trabalhar com órgãos médicos locais e interessados. As organizações devem identificar lacunas e trabalhar em um plano a fim de fornecer aos trabalhadores médicos e à comunidade a autonomia de sua condição e seu sistema de saúde. Os treinamentos da equipe médica devem incluir os que trabalham em centros de saúde e hospitais para garantir a sustentabilidade e o crescimento profissional. Meios criativos de proporcionar benefícios iguais para profissionais de organizações e dos governos locais devem ser descobertos e encorajados.

A migração é um fenômeno que pode ser impulsionado por diversas razões, mas o fato de que as pessoas possivelmente vão permanecer em suas cidades e países se encontrarem o ambiente ideal não é algo que possa ser desconsiderado. Estabilidade e segurança, juntamente a potenciais de crescimento, são necessárias para todos os profissionais de saúde. Muitas vezes, as pessoas ficam em condições ainda mais vulneráveis porque não têm escolha ou meios de sair delas. Porém, se lhes oferecerem um ambiente em que se sintam seguras, além da capacitação e dos recursos necessários para realizarem suas funções e responsabilidades, elas serão empoderadas. Uma vez empoderadas, essas pessoas se sentirão seguras e terão autonomia suficiente para que o sistema de saúde funcione.

Isso é, de toda forma, muito idealista. Os líderes podem olhar para vários modelos de assistência de todo o mundo e adaptá-los em países da África, onde a questão de recursos humanos de saúde é um problema. As lições aprendidas devem ser documentadas e incorporadas ao planejamento, da mesma forma que é necessário desenvolver estratégias para aprimorar ainda mais os sistemas debilitados. A tarefa pode parecer assustadora, mas o desafio é algo que deve impulsionar todo e qualquer profissional de medicina humanitária – não apenas para melhorar a si mesmo, mas para melhorar a vida dos outros.

¹ https://bit.ly/2Itf2JS

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