Vacinas para quem mais precisa

O coordenador da Campanha de Acesso de MSF para a América Latina, Felipe de Carvalho, explica a importância do acesso à vacina e como podemos melhorá-lo nessa pandemia.

Foto: Albert Masias/MSF

A 12ª reunião ministerial da Organização Mundial do Comércio (OMC), que termina nesta quinta-feira, 16 de junho, em Genebra, será lembrada como um grande sucesso ou um grande fracasso na luta contra a desigualdade no acesso à saúde. Isso porque os países membros da OMC têm a oportunidade de concluir nesta semana uma negociação que se arrasta há dois anos, relacionada à suspensão de regras de propriedade intelectual que dificultam a distribuição de vacinas, medicamentos e diagnósticos de Covid-19 para quem mais precisa.

A propriedade intelectual é garantida por patentes, segredos industriais e outras formas de controle sobre conhecimentos e ideias. É um tema de amplas implicações políticas. No campo da saúde, especialmente durante crises sanitárias, o que está em jogo é: como deve ser tratado o conhecimento capaz de salvar vidas? Como propriedade exclusiva de empresas que vão controlá-lo conforme seus interesses ou um bem comum a ser compartilhado em prol da sobrevivência humana?

A suspensão de regras de propriedade intelectual, prevista nos parágrafos 1,3 e 4 do artigo IX do acordo de criação da OMC, favorece o compartilhamento do conhecimento. Por isso, no dia 16 de outubro de 2020, a África do Sul e a Índia propuseram na OMC a suspensão de 17 dos 73 artigos do Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (TRIPS), tendo em vista as circunstâncias excepcionais de crise criadas pela pandemia. Essa proposta recebeu endosso formal de mais 65 países e declarações de apoio de mais de 100.

O foco da proposta é aproveitar ao máximo a capacidade produtiva existente, para que ferramentas de saúde, equipamentos médicos, bem como ingredientes, materiais e princípios ativos pudessem ser desenvolvidos e distribuídos sem nenhum impedimento legal. Para os países, isso representaria mais opções de abastecimento; para as populações, menor risco de morte por falta de acesso a bens essenciais de saúde.

No entanto, em quase dois anos de negociações na OMC, o texto foi completamente desfigurado pelos países que são sede das grandes empresas farmacêuticas e gozaram de amplos privilégios e preferências na distribuição de vacinas, medicamentos e diagnósticos. Manter as regras de propriedade intelectual durante a pandemia ampliou ainda mais a concentração no mercado farmacêutico, no qual poucas multinacionais controlam as decisões sobre preço e distribuição que afetam a vida de milhões de pessoas.

Na versão atual do texto, apenas um inciso, de um único artigo do acordo TRIPS, seria suspenso e de forma limitada, sem oferecer uma solução realmente prática para as diversas barreiras de propriedade intelectual que dificultam a produção e circulação de vacinas, medicamentos e diagnósticos, bem como de ingredientes, materiais e dados necessários para formulá-los.

O texto também traz proibições que desestimularão os países a redistribuir, compartilhar, doar e comercializar ferramentas médicas. Nesse sentido, em vez de reverter um quadro de inequidade, o texto está criando novos obstáculos, ambiguidades e incertezas, absolutamente danosas para o ambiente de colaboração que precisa existir durante esta e futuras pandemias.

Mas resta uma última etapa. Os ministros dos países da OMC ainda têm a oportunidade de formatar um texto que seja mais fiel à proposta original e ao clamor popular por equidade. O Brasil sempre teve um papel ativo na defesa das populações excluídas pelo jogo de poder e monopólio das grandes multinacionais farmacêuticas. Foi liderança-chave na aprovação de importantes declarações na OMC, na Organização Mundial de Saúde (OMS) e na Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI), afirmando que direitos de propriedade intelectual não devem estar acima do direito à saúde nem de objetivos de desenvolvimento.

Hoje, estão prevalecendo os argumentos e propostas dos países que foram responsáveis por uma grande falha moral na luta contra a pandemia, acumulando para si e depois jogando fora medicamentos e vacinas que ainda faltam em muitas partes do mundo. Em situações semelhantes no passado, a resistência de países do sul global, e em particular a diplomacia brasileira, fizeram a diferença. Toda essa expertise precisa ser usada agora para transformar um texto ineficaz e cheio de maus precedentes numa vitória para a saúde pública, incluindo a suspensão de todas as formas de propriedade intelectual que dificultam compartilhamento de conhecimentos, aplicada a todas as ferramentas médicas, não apenas vacinas, e de modo que todos os países sejam contemplados.

(Artigo publicado originalmente no jornal O Globo)

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