“A única maneira de se deslocar pelo hospital agora é de barco”

A líder da equipe médica de MSF, Benedetta Capelli, acaba de voltar de Pibor, onde as crescentes inundações atingiram o hospital de MSF

“A única maneira de se deslocar pelo hospital agora é de barco”
“Nosso hospital em Pibor fica nos arredores da cidade, a cerca de 100 metros do rio Gumuruk, que circunda o hospital. 
 
Outubro costuma marcar o fim da estação de chuvas no Sudão do Sul e não tivemos muita chuva nas últimas semanas. Mas com a chuva caindo na Etiópia e no Quênia, duas semanas atrás, o rio Pibor começou a subir rapidamente.
 
As inundações não são novidade em Pibor – houve grandes inundações em 2013 e 2017 –, então tínhamos um plano caso o complexo de MSF estivesse em risco. Mas não tínhamos ideia de quão sério isso seria. 
 
Já havíamos mudado a área de isolamento para terrenos mais altos em setembro. Em 13 de outubro, também mudamos a ala de adultos, a ala infantil e o centro de alimentação terapêutica. 

 

Quando a água começou a ir em direção à sala de operações, tivemos de fechá-la. Levamos o equipamento mais caro – e mais pesado – para uma área que esperávamos que permanecesse seca, na esperança de preservá-lo.  
 
As próximas áreas em risco eram nossos armazéns. Fizemos o possível para mover o máximo de itens para uma zona livre de água.
 
Até agora estávamos seriamente preocupados. Todos os dias a água continuava subindo de 10 a 20 cm. 
 
Todos começamos a temer que nossos esforços fossem em vão. Para nossa equipe do Sudão do Sul, o sofrimento dobrou. Assim como nosso complexo estava desaparecendo debaixo d’água, suas próprias casas estavam sendo inundadas, eles também tinham suas famílias e suas casas ameaçadas – um duplo estresse para eles. 
 
No momento em que vimos a água se infiltrar nas novas tendas ‘seguras’, decidimos procurar outro local para o nosso hospital. 
 
As autoridades encontraram para nós um espaço no mercado de Pibor e, nos dias seguintes, desmantelamos o hospital e o transferimos, peça por peça, para o novo local.
 
Criamos uma área com tendas para todas as principais atividades médicas, mas com um número reduzido de leitos – simplesmente não havia espaço. Na última sexta-feira, 18 de outubro, terminamos de transferir os pacientes restantes – nove no total – para o local temporário.  
 
Nossa equipe estava exausta, então enviamos a maioria da equipe internacional para a capital, Juba, para se recuperar, deixando uma reduzida equipe de três – uma pessoa da área médica (eu), um coordenador de projeto e um especialista em água e saneamento que chegaram de Juba, apoiados por nossa equipe local. 
 
Não nos sentíamos mais confortáveis dormindo no complexo de MSF. A água estava vindo de todos os lados agora. Em nossa última noite lá, todos dormimos juntos no contêiner mais alto. Tivemos que remar em um barco de plástico para alcançar os banheiros. De fato, a única maneira de se deslocar pelo hospital agora é de barco – o complexo literalmente se tornou parte do rio.
 
No local temporário do mercado, nossa equipe está oferecendo cerca de 60 consultas ambulatoriais por dia, além de atendimento pré-natal, atendimento hospitalar e partos. Mas estamos preocupados com o local e como podemos cuidar dos pacientes mais graves – pacientes que já estavam conosco e novos que estão chegando. 
 
O local não possui eletricidade e está cheio de lama até os joelhos. Perdemos muitos itens devido à enchente – agora temos apenas um concentrador de oxigênio. Temos medicamentos suficientes para uma semana, a menos que muitos novos pacientes cheguem. Estamos aguardando mais medicamentos de Juba, mas o transporte – agora apenas possível por helicóptero – é desafiador. A pista de pouso de helicóptero é apenas uma fina faixa de terra cercada por água. 
 
Como não temos cirurgião, não podemos realizar cesarianas de emergência. Como obstetriz, sei que se uma mulher tiver uma ruptura uterina, ela e o bebê poderão morrer, deixando os filhos existentes sem mãe.
 
Não conseguimos manter nossa cadeia de frio, então não podemos realizar vacinação. Em um lugar como Pibor, onde a cobertura vacinal é incerta devido às pessoas que se deslocam e à falta de instalações de saúde, isso pode ser uma bomba-relógio.
 
A maioria das pessoas em Pibor é semi-nômade: segue seus rebanhos na estação seca e se instala na cidade na estação chuvosa. Elas ainda estão na cidade, mas 90% de seus abrigos estão debaixo de água. Elas estão hospedadas em um local acima da linha d’água, mas não têm latrinas e existe apenas um poço para as cerca de 50 mil pessoas em Pibor. 
 
As doenças transmitidas pela água são uma grande preocupação para a saúde – e a cólera é o maior medo. Um surto de sarampo já estava em andamento e estamos preocupados que os casos possam aumentar. Também esperamos um aumento de infecções do trato respiratório, malária e picada de cobra. Também podemos ver futuros surtos de doenças infantis relacionados à atual falta de vacinação.
 
Nosso próximo passo é encontrar um local para instalar um hospital de emergência parcialmente equipado com uma barraca inflável – mas o local que identificamos no dia 23 de outubro já está embaixo d’água.
 
Não temos ideia de quanto tempo irão durar as inundações – em 2017, as águas da enchente levaram três meses para baixar – e agora a água ainda está subindo. Existem muitos desafios e não podemos fazer isso sozinhos – precisamos desesperadamente de outras organizações para ajudar na resposta de emergência. 
 
Quando deixei Pibor ontem, a cidade e seus arredores pareciam um lago. Voando sobre as pastagens inundadas, pude ver o verde da grama coberto com o reflexo do sol e das nuvens na água. Na superfície, parecia bonito – mas não é nada bonito quando você pensa em todas as pessoas forçadas a sair de suas casas e todas aquelas isoladas pelas águas da enchente”.
 
Compartilhar
Share on facebook
Share on twitter
Share on linkedin
Share on whatsapp
Share on print