Uma dose justa contra a pneumonia

Artigo de Felipe de Carvalho, coordenador no Brasil da Campanha de Acesso de Médicos Sem Fronteiras

Uma dose justa contra a pneumonia

A pneumonia é a principal causa da morte de crianças no mundo. Quase 1 milhão de crianças por ano são vítimas da doença, uma a cada 35 segundos. As populações mais atingidas vivem em países em desenvolvimento ou em condições vulneráveis, sem acesso a sistemas de saúde minimamente estruturados. A organização humanitária Médicos Sem Fronteiras (MSF), que leva assistência médica a pessoas em regiões de conflito, desastres e epidemias, é testemunha desse flagelo tão cotidiano quanto evitável.

Existe uma vacina eficaz contra a pneumonia de origem bacteriana, a vacina pneumocócica conjugada – PCV, na sigla em inglês. Muitos países, porém, não conseguem distribuí-la amplamente porque não têm condições de pagar os preços cobrados pelos dois únicos fabricantes, as farmacêuticas Pfizer e GlaxoSmithKline (GSK).

Como as empresas negociam caso a caso, há distorções flagrantes nos preços da PCV. O estudo “Dose certa”, publicado por MSF em janeiro de 2015, mostrou, por exemplo, que a dose custava US$ 63,74 no Marrocos, enquanto na França o fabricante cobrava US$ 58,43. São necessárias três doses para imunizar uma criança. O resultado é que metade dos países não conseguiu introduzir a PCV em seu calendário regular de vacinação, e o preço foi apontado como o grande obstáculo.

Apenas nações de renda muito baixa têm subsídio da Aliança Global de Vacinas para a compra da PCV. Ainda assim, o apoio da Aliança se limita à vacinação de crianças de até 1 ano de idade. Organizações humanitárias, que em muitas situações de crise representam o único recurso das populações a cuidados médicos, pagam preços de mercado. O Brasil negociou com a GSK a transferência da tecnologia da vacina para o Laboratório Bio-Manguinhos, da Fiocruz, e a distribui no Sistema Único de Saúde. Mas a maioria dos países em desenvolvimento não tem peso – de mercado e estrutura de saúde – para obter acordos semelhantes.

No marco da Semana Mundial da Imunização, Médicos Sem Fronteiras entregou à Pfizer e à GSK um abaixo-assinado em que quase 400 mil pessoas de 170 países reivindicam das duas farmacêuticas um preço de US$ 5 por três doses da PCV para países em desenvolvimento e organizações humanitárias. Esse valor tem como base o anúncio feito pelo Serum Institute, da Índia, de que tem condições de produzir a vacina em alguns anos e vendê-la por US$ 6 as três doses.

A oferta do laboratório da Índia, país que está entre os maiores produtores mundiais de genéricos, é uma baliza para determinar o valor justo da vacina num mercado global dominado por grandes fabricantes e marcado pela opacidade. Há pouca ou nenhuma transparência sobre a composição dos preços de medicamentos essenciais. Uma resolução aprovada na Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2015 convocou os governos a informar quanto pagam pelas vacinas, a fim de que seja criado um banco de dados internacional, com os objetivos de aumentar a transparência e favorecer a redução de preços, sobretudo das vacinas mais recentes. 

Em 2001, segundo o estudo “Dose Certa”, era possível pagar 67 centavos de dólar pelo pacote básico de seis vacinas então recomendado pela OMS. Em 2014, o pacote passou a incluir vacinas contra 12 enfermidades, mas seu preço mínimo aumentou 68 vezes, para US$ 45,59 (ou US$ 32,09, se não for considerada a vacina contra o HPV, que se aplica apenas a meninas adolescentes).

O aumento se deveu em grande parte à introdução de vacinas mais caras, entre elas a PCV, a que mais pesa no pacote básico. Desde 2009, as vendas da vacina contra a pneumonia renderam mais de US$ 30 bilhões à Pfizer e à GSK – quase o triplo do orçamento da Aliança Global de Vacinas para 20 anos. O faturamento tem se sustentado na lógica de maximizar as vendas para os 25% mais ricos, deixando 75% das crianças do mundo desprotegidas contra seu maior algoz.

Nos anos 50, o médico e epidemiologista americano Jonas Salk, que desenvolveu a primeira vacina contra a poliomielite, foi contra o patenteamento da sua invenção. Além de sua pesquisa ter sido financiada em parte por doações do público, ele argumentou que as técnicas usadas não eram novas, já que se beneficiara do trabalho feito antes por outros cientistas. Albert Sabin, que logo depois de Salk aprovou sua versão da vacina antipoliomielite, também não quis patenteá-la.

A partir dos anos 90, novas regrais globais de propriedade intelectual beneficiaram desproporcionalmente a indústria farmacêutica. É comum, por exemplo, que as empresas reivindiquem a patente – e, portanto, o monopólio da produção e da venda – de medicamentos que combinam princípios ativos já existentes e não representam, de fato, uma inovação. Na Índia, Médicos Sem Fronteiras apresentou uma oposição à concessão de patente à vacina PCV da Pfizer, que está sendo examinada pelas autoridades. O argumento técnico de MSF é que o método de produção da vacina não cumpre o requisito de atividade inventiva da lei indiana.

Se as vacinas contra a poliomielite fossem desenvolvidas agora, é razoável supor que a luta contra uma epidemia que matava ou deixava sequelas em milhares de pessoas todos os anos não seria tão bem-sucedida quanto foi. Para as crianças deste início do século 21, notadamente aquelas mais desassistidas, a pneumonia é uma calamidade inaceitável.  Médicos Sem Fronteiras acredita que garantir seu acesso à vacina é mais do que viável, é um imperativo que não pode ser adiado.

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