Um mês após a explosão em Beirute, MSF atua diretamente com as comunidades

Visitas domiciliares para atender pessoas com doenças crônicas, tratamento de feridas e consultas de saúde mental são as principais atividades

Um mês após a explosão em Beirute, MSF atua diretamente com as comunidades

A grande explosão que atingiu Beirute, capital do Líbano, aconteceu há exatamente um mês. Confira abaixo a entrevista com Jonathan Whittall, ex-coordenador de emergência de MSF em Beirute e diretor do Departamento de Análise de MSF.

O que você viu em Beirute desde a explosão do porto?

O Líbano foi atingido por uma onda após outras ondas de crise. A explosão em Beirute expôs necessidades e vulnerabilidades que até agora estavam escondidas. Agora, nas ruas da cidade, é possível ver a destruição da infraestrutura ao lado das necessidades recentemente expostas de uma população que já passou por múltiplos choques.

As pessoas cujas casas foram destruídas experimentaram um colapso econômico poucos meses antes, levando muitas delas à pobreza. Algumas fugiram da guerra nos últimos anos antes de buscar refúgio no Líbano. A maioria viveu a incerteza política dos protestos do ano passado. E, como o resto do mundo, o Líbano também passa por uma pandemia que colocou uma grande pressão sobre o país.

Essa explosão foi uma crise que ninguém deveria ser forçado a absorver. Para o Líbano, é uma crise no topo de outra crise que deixou as pessoas cansadas e com raiva.

Você pode descrever a resposta humanitária até agora?

Nessas primeiras semanas após a explosão, a resposta humanitária às necessidades emergenciais das pessoas foi prestada principalmente por organizações da sociedade civil libanesa, movimentos sociais, membros da comunidade e voluntários.

Após a explosão, as pessoas transportaram os feridos para o hospital em seus carros. As pessoas abriram suas casas para aqueles que ficaram desabrigados. Em todas as áreas afetadas, se mobilizaram para fornecer alimentos, água potável, itens essenciais e cuidados de saúde de emergência. Os voluntários estão limpando as ruas e ajudando os feridos.

Nas primeiras horas após a explosão, os hospitais de Beirute receberam milhares de feridos. Isso aconteceu em um momento em que os hospitais já estavam sobrecarregados. À medida que a situação econômica piorava e a saúde privada se tornava inacessível, muitos libaneses recorreram ao sistema público de saúde. Além disso, muitos hospitais públicos estavam sob pressão devido à COVID-19.

Mas apesar dos sérios desafios enfrentados pelo sistema de saúde do Líbano, a primeira resposta e o tratamento dos feridos foram realizados por profissionais de saúde incrivelmente dedicados, alguns vindos de hospitais que foram destruídos ou danificados pela explosão.

As comunidades afetadas em Beirute, e aqueles que respondem a essas crises múltiplas, foram elogiadas por sua ‘resiliência’. No entanto, o que aconteceu no Líbano é uma série de crises provocadas pelo homem, das quais não se deve esperar que as pessoas se recuperem continuamente. Os Estados devem proteger as pessoas, não gerar a necessidade de resiliência infinita.

Depois de um desastre, juntar os cacos é uma questão de sobrevivência. Mas aplaudir a tragédia de viver em modo perpétuo de sobrevivência pode normalizar um ciclo inaceitável do que alguns descreveram para mim como uma forma de ‘abuso sancionado pelo Estado’. Muitos dos que trabalham na resposta a esta última crise me disseram que não querem um tapinha nas costas por serem resilientes; eles simplesmente não querem ter que juntar os cacos novamente.

Como MSF se encaixa nessa resposta?

A resposta de emergência de MSF foi projetada para trabalhar junto com as iniciativas da comunidade e apoiar as respostas existentes.

Rapidamente percebemos que não eram apenas os feridos que precisavam de ajuda, mas também os pacientes em uso de medicamentos para doenças crônicas. Muitos haviam perdido ou esgotado seus medicamentos e não podiam pagar por mais ou não tinham mais acesso a instalações de saúde que tinham sido danificadas ou destruídas. A explosão do porto também agravou os traumas existentes e as necessidades de saúde mental.

Desde o início de nossas atividades, tratamos 737 pacientes com feridas, 2.360 pacientes com doenças crônicas visitaram nossos pontos fixos ou foram visitados por nossas equipes de atendimento domiciliar e 1.645 pacientes receberam medicamentos para doenças crônicas como uma medida temporária. Temos psicólogos trabalhando em cada um de nossos pontos médicos e realizando visitas domiciliares, enquanto uma assistente social conecta nossos pacientes a outras iniciativas de ajuda para atender outras necessidades.

Outra parte importante de nossa resposta foi dar às iniciativas comunitárias os meios para atender às necessidades das pessoas que precisam de apoio. Por exemplo, continuamos a fornecer suprimentos de itens de emergência essenciais para Egna Legna, uma organização que apoia trabalhadores migrantes que foram particularmente afetados pela crise econômica e a explosão. Outra iniciativa foi apoiar uma cozinha comunitária chamada Matbakh Al-Balad. Enquanto os voluntários da cozinha comunitária distribuíam refeições quentes, eles identificaram famílias que precisavam de assistência adicional. Fornecemos a eles kits de cozinha que poderiam ser doados àqueles que identificaram como tendo necessidades específicas.

Outra forma de atuarmos em conjunto com as iniciativas comunitárias é por meio de treinamento em prevenção e controle de infecções para voluntários que trabalham na linha de frente dessa resposta. Como esta resposta humanitária se concentra nos mais vulneráveis, temos o dever adicional de reduzir a exposição das pessoas à COVID-19 quando elas estão recebendo outras formas de assistência.

Quais são as lacunas que você está vendo?

O sistema de ajuda tradicional está demorando para ser totalmente mobilizado para esta resposta. Vimos muitas avaliações realizadas, mas nem sempre isso se traduz em ações imediatas. Ouvimos de muitos membros da comunidade que eles estão cansados de equipes de avaliação que vêm para pesquisar suas necessidades e depois vão embora. Como MSF, tentamos evitar isso fornecendo kits de higiene enquanto identificamos quais pacientes precisam de recargas de medicamentos. Desta forma, evitamos fazer perguntas sem já agir. Mas nosso trabalho é uma pequena parte do esforço geral de alívio e reconstrução que é necessário e outras organizações precisarão atuar, já que as respostas iniciais da própria comunidade ficam sob pressão.

Tradicionalmente, a ajuda humanitária no Líbano costuma ser fornecida com base na nacionalidade ou no status legal do destinatário. Isso significa que parte da ajuda é dada aos refugiados sírios e palestinos, enquanto outras iniciativas se concentram nas comunidades libanesas vulneráveis. Esta abordagem pode ser um obstáculo para uma oferta de ajuda baseada em necessidades reais em um contexto de múltiplas crises simultâneas. Na situação atual, é impossível traçar uma linha entre a causa do sofrimento das pessoas – crise econômica, COVID-19, guerra nos países vizinhos ou a explosão do porto – nem é possível dividir aqueles que precisam de ajuda com base no fato de serem refugiados, migrantes ou libaneses.

Temos visto e ouvido casos em que as pessoas não recebem assistência por serem migrantes ou refugiados e vice-versa. A explosão não fez distinção entre suas vítimas e a resposta humanitária também não deveria. Não devemos permitir que essa separação entre os destinatários da ajuda seja reforçada pela maneira como as agências têm segregado suas respostas humanitárias entre diferentes comunidades nos últimos 10 anos. É necessária uma resposta de ajuda que leve em consideração as necessidades gerais causadas por crises simultâneas e seja sensível a vulnerabilidades específicas, a fim de garantir que todos que precisam de assistência a recebam.

Como você vê o papel de MSF em emergências como esta?

MSF é uma organização médico-humanitária de emergência e temos um papel a desempenhar nestes primeiros dias após a crise para responder às necessidades imediatas. Em Beirute, vemos nosso papel como trabalhar ao lado de iniciativas comunitárias e preencher a lacuna entre o dia da crise e a chegada de outras organizações de ajuda.

Como organização, estamos no Líbano desde 1976. Foi o primeiro conflito ao qual MSF respondeu após sua criação. Temos equipes motivadas, dedicadas e altamente qualificadas de diferentes projetos de MSF no país para liderar essa resposta a emergências. Enquanto MSF estava implementando o projeto de emergência completo, vimos profissionais de toda a organização no Líbano se mobilizando e se voluntariando para ajudar a limpar os escombros das ruas nos dias após a explosão.

Nossa resposta é pequena se comparada aos esforços coletivos das próprias comunidades, e nossa abordagem tem sido a de nos adaptarmos para preencher as lacunas, uma flexibilidade que é possibilitada por nosso financiamento independente. Continuaremos a desempenhar nosso papel como ator humanitário de emergência ao lado de nossos programas de longa duração que atendem a necessidades crônicas. Mas conforme a situação no Líbano piora, precisamos ver um sistema de ajuda que possa se mobilizar em resposta às necessidades gerais causadas por múltiplas crises, ao invés de apenas segmentos de sofrimento causados por esta última onda de desastre.

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