Tratando uma doença que não precisava mais existir

Rosie Burton, médica britânica baseada na África do Sul, acaba de voltar de Bangladesh, onde trabalhou durante um mês em um centro de tratamento de difteria administrado por MSF

Tratando uma doença que não precisava mais existir

Não deveria haver mais casos de difteria. A doença, que é fatal para as crianças, é coberta pelo pacote básico de vacinação, portanto, casos de difteria indicam uma ruptura fundamental nos programas de vacinação.

Em Mianmar, os rohingyas têm acesso muito limitado aos cuidados básicos de saúde, e é por isso que há a incidência da doença. Nos últimos meses, mais de 688 mil pessoas fugiram de Mianmar e agora vivem em grandes acampamentos superlotados com acesso inadequado a abrigo, água, alimentação e cuidados médicos. Essas condições são propícias para a propagação de doenças infecciosas.

Cheguei no final de dezembro para trabalhar no centro de difteria que Médicos Sem Fronteiras (MSF) abriu para aliviar a pressão sobre os outros centros de saúde.  É importante que os pacientes com difteria sejam atendidos separadamente, senão, todos os outros pacientes no centro de saúde correm o risco de contrair a doença.  

Quando cheguei, cerca de 100 pacientes estavam na zona laranja do centro, que é dedicada aos pacientes que não são críticos, mas que precisam de tratamento antibiótico para se recuperar.

Em uma situação como esta, uma doença que afeta muitas crianças, os pacientes frequentemente chegam acompanhados. Às vezes, os pais também trazem outras crianças que não estão infectadas, já que não há mais ninguém para cuidar de seus outros filhos. A difteria pode ser prevenida pelo uso de antibióticos, então eles são dados a todos que chegam ao centro.
Quando cheguei, o plano era abrir a zona vermelha em uma semana. A zona vermelha cuida dos pacientes mais sérios que precisam de tratamento extra para se recuperar.

A maioria dos pacientes com difteria tem febre, dor de garganta e dificuldade de engolir. Para algumas pessoas a doença pode ser muito grave: pode ocasionar dificuldades em respirar e inflamação nas amídalas. A difteria forma uma cobertura espessa na garganta que pode se deslocar, obstruir a via aérea e causar inchaço do pescoço, podendo comprimir ou bloquear as vias aéreas. Isso muitas vezes acontece com as crianças, aumentando a possibilidade de morrerem.  

O que torna a difteria uma infecção grave é o fato de ela produzir uma toxina, basicamente um veneno, que pode se espalhar pelo corpo. Isso pode causar complicações, inclusive com o coração, tornando-o muito lento, muito rápido, ou mesmo fazendo com que ele pare. Também pode causar paralisia, inclusive dos músculos utilizados na respiração, sufocando as pessoas.

A segunda parte do tratamento é dar a esses pacientes uma antitoxina. Também pode haver complicações já que ele é fabricado em sangue de cavalo. Como os surtos de difteria são tão raros, nenhuma empresa farmacêutica acredita na formação de um mercado para uma antitoxina que tenha sido desenvolvida em laboratório, por isso ela ainda é manufaturado de maneira primitiva.  

Contudo, os produtos fabricados em sangue de cavalo têm uma alta taxa de alérgenos em seres humanos – eles podem levar as pessoas a desmaiarem ou entrarem em choque anafilático, portanto os pacientes precisam do acesso ao tratamento de emergência quando ele é oferecido. Na África do Sul, onde eu trabalho, damos esse tipo de tratamento aos pacientes de terapia intensiva, enquanto aqui temos que tornar o tratamento seguro no hospital de campanha.

Quando você fornece o tratamento, é preciso monitorar as pessoas de perto e controlar a taxa em que ele é aplicado. As reações alérgicas podem aparecer muito rapidamente, então você precisa de uma enfermeira para cada paciente, o que significa que ter um número suficiente de profissionais de saúde bem treinados é substancialmente importante.
Em Bangladesh, não houve sequer um caso de difteria durante muitos anos, então o treinamento foi extremamente importante para garantir que pudéssemos trabalhar com segurança. Foi maravilhoso trabalhar com funcionários de Bangladesh. Devido ao grande número de pacientes que precisam de tratamento, eles eram altamente qualificados. Eles realmente assumiram o desafio de responder ao surto.

Quando os pacientes, especialmente as crianças, recebem a antitoxina, é incrível ver a recuperação, mesmo se horas antes eles estivessem apáticos e não respondiam. Lembro-me verdadeiramente das crianças se recuperando e voltando para casa. Ou para o lugar que eles agora identificam como casa.

Mas quando os pacientes deixam a instalação, você está ciente de que está enviando-os para um campo superlotado, onde há problemas de água e saneamento. Podemos curá-los da difteria, mas nós os enviamos de volta ao lugar onde correm riscos de serem contaminados por novos surtos. Já houve um surto de sarampo, qual será o próximo?

A questão continua: qual é o próximo passo para essas pessoas? Há uma grande preocupação de que se eles voltarem para Rakhine, podem mais uma vez estar em perigo e terem acesso restrito a assistência. O repatriamento voluntário, seguro e digno só pode ser considerado quando as condições em Rakhine melhorarem para os rohingyas.

Então, havia um sentimento de que você estava fazendo a diferença para cada indivíduo nesse estágio de tratamento, mas que a situação como um todo é muito mais complexa.

 

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