Tratando os feridos de Mossul: um ano no centro de atendimento pós-operatório de MSF

Trabalho é essencial para recuperação dos pacientes na cidade iraquiana

Tratando os feridos de Mossul:  um ano no centro de atendimento pós-operatório de MSF

Em uma ala no centro de atendimento pós-operatório de MSF em Mossul, Ahed está dormindo profundamente. A jovem acabou de passar por sua 27ª cirurgia em menos de dois anos. Sua tia, Rana, coloca a mão na cabeça de Ahed e sussurra: “Eu só espero que suas feridas se curem para que ela não seja constantemente lembrada do que aconteceu com sua família.”

No dia 19 de junho de 2017, a batalha por Mossul entrou em sua fase mais intensa, conforme o exército iraquiano tentava retomar os últimos bairros da Cidade Velha do grupo Estado Islâmico. Rana explica: “A família de Ahed estava morando na região. Eles tentaram fugir, mas os combatentes do Estado Islâmico os trouxeram de volta e colocaram explosivos em sua casa antes de subir no telhado para usá-lo como uma posição estratégica. Logo depois, dois ataques aéreos atingiram o bairro. Setenta famílias morreram em poucos minutos. Ahed, duas de suas irmãs e uma vizinha foram as únicas sobreviventes.” Ela sobreviveu, mas seu corpo estava cheio de estilhaços. Vinte e dois meses depois, ela ainda não se recuperou totalmente.

Ahed é uma das muitas crianças sendo tratadas no hospital de Médicos Sem Fronteiras (MSF) no leste de Mossul no último ano. Em abril de 2018, MSF abriu um centro de atendimento abrangente pós-operatório para tratar pacientes com lesões traumáticas. Um ano depois, 321 pessoas, incluindo 52 crianças, passaram pelo hospital, algumas permanecendo por semanas ou mesmo meses de tratamento. “Muitos pacientes com ferimentos de guerra precisam de acompanhamento”, explica Itta Helland-Hansen, coordenadora de campo de MSF no hospital. “Em Mossul, a ofensiva militar causou um enorme estrago no sistema de saúde local. Então, estamos aqui para garantir que as pessoas possam obter assistência médica e receber tratamento em um ambiente tão desafiador.”
 

Semanas ou meses de recuperação para alguns pacientes

A poucos leitos de distância de Ahed, um adolescente chamado Ali está deitado em seu leito, bem acordado. Peças de metal cercam a perna de Ali, mas ele não parece incomodado com isso. O garoto de 14 anos está concentrado jogando em seu celular. Sem tirar os olhos da tela, ele explica o objetivo do jogo para os médicos que param em sua cama para a ronda médica diária. No jogo, Ali cai de paraquedas em uma ilha e tem que procurar armas e equipamentos para matar outros, evitando ser morto. “Em casa, meus irmãos mais velhos jogavam, mas minha mãe não me deixava jogar. Ela ficava dizendo que era muito violento e eu era muito jovem, que eu ainda estava indo para a escola. Mas aqui ela é um pouco mais flexível; ela sabe que eu fico entediado facilmente.” Ali está na instalação há duas semanas depois que ele caiu de sua bicicleta e feriu gravemente a perna. Nem todos os pacientes aqui são feridos de guerra, MSF também trata pessoas feridas em acidentes cotidianos.

Ali sabe que ele terá que passar por mais algumas semanas de fisioterapia antes de se levantar, mas os médicos estão muito otimistas sobre sua recuperação. Para outros, o caminho para andar novamente levará mais tempo. Abdallah, de 12 anos, senta-se do lado de fora da ala. Ele acabou de terminar sua sessão de reabilitação e tenta não mostrar o quão exausto está com o exercício. Ele só tem uma perna e ainda não está pronto para usar uma prótese. No verão de 2018, Abdallah foi ferido em uma explosão que ele acha que era uma mina terrestre. Seu irmão estava com ele e morreu instantaneamente com a explosão. “Os médicos tentaram salvar minha perna, mas não conseguiram. Fiquei no hospital por um mês depois da lesão e depois fui para casa. Sem minha perna e sem meu irmão.” Desde então, Abdallah passou por vários hospitais para tratar suas feridas. Quase um ano depois, ele ainda não se recuperou totalmente. Quando ele foi admitido na unidade de cuidados pós-operatórios de MSF há algumas semanas, os médicos descobriram que Abdallah tinha resistência a antibióticos. “É por isso que tudo está demorando tanto para melhorar”, ele suspira.

 

O fardo invisível além dos ferimentos

Abdallah não é o único paciente nessa situação. Mais de um terço dos pacientes no centro de cuidados pós-operatórios de MSF apresentam alguma forma de resistência a antibióticos.[1] Isso significa que eles não respondem normalmente a alguns dos antibióticos que lhes são administrados, o que complica consideravelmente sua recuperação. O ‘vizinho’ de Abdallah no hospital é Salim, um menino da mesma idade. Ele também apresenta resistência a antibióticos e tem que ficar em uma sala de isolamento para evitar a disseminação de infecções resistentes a antibióticos. Em dezembro de 2018, Salim foi atropelado por uma van a caminho da escola. “Fui imediatamente levado ao hospital mais próximo. No início, os médicos disseram ao meu pai e a mim que provavelmente perderia minhas pernas. Eu estava com tanto medo. Mas então, outro médico veio e disse que faria tudo o que pudesse para salvá-las. Fui operado quatro vezes. E mais oito vezes desde que cheguei aqui no hospital de MSF, em janeiro”. Desde então, Salim passou a maior parte do tempo em seu quarto, lendo seus livros escolares e jogando dominó com o psicólogo da instalação. “Eu também fiz amizade com alguns dos meninos aqui, mas não podemos passar muito tempo juntos ou ficar muito perto um do outro porque a maioria de nós tem bactérias e tem que usar essa vestimenta verde para proteção.”

O amigo de Salim, Saif, é um dos pacientes mais jovens da instalação. Ele está aqui há um mês. Sua família foi deslocada pelo recente conflito e vive em um acampamento não muito distante de Mossul. “A vida no acampamento não era fácil, mas eu ainda estava feliz porque eu podia ir para a escola. Um dia, outro garoto na escola jogou uma pedra grande em mim e quebrou a minha perna”, explica ele. Saif foi de um hospital para o outro, antes de parar nas instalações de MSF no leste de Mossul. Lá, as equipes de MSF descobriram que ele também tinha resistência a antibióticos. “Os médicos me dizem que está demorando mais [para me recuperar] porque tenho bactérias em meu corpo e essas bactérias tornam mais difícil que minha perna fique normal de novo. E essas bactérias podem machucar outras pessoas também, então os médicos me colocaram nesta sala de isolamento”. As equipes de saúde mental e de promoção de saúde de MSF visitam Saif e outros pacientes que sofrem de resistência a antibióticos todos os dias para ajudá-los a lidar com as condições de seu tratamento.

Um ano depois de inaugurada, a instalação de MSF no leste de Mossul provou ser essencial nos processos de recuperação desses pacientes. Como Itta Helland-Hansen explica, “Muitos deles foram de hospital em hospital para obter tratamento antes de chegar aqui, mas eles simplesmente não se recuperavam, porque os cuidados pós-operatórios não estavam disponíveis onde eles estavam ou porque ninguém notou que eles tinham desenvolvido algum tipo de resistência a antibióticos. Em muitos casos, foi um pouco dos dois até hoje, somos uma das únicas instalações no Iraque capazes de identificar e tratar adequadamente esses pacientes. Isso explica, por si só, a razão de nossa presença. A batalha por Mossul pode ter terminado há quase dois anos, mas as necessidades permanecem. É importante estarmos lá e que essas pessoas não sejam esquecidas.”

 

MSF presta serviços essenciais para pessoas atingidas pela violência em Mossul desde o final de 2016. Ao longo de 2017 e 2018, MSF manteve vários postos de estabilização de trauma no leste e oeste de Mossul, e executou uma série de serviços, incluindo cuidados de emergência e intensivos, cirurgia e cuidados de saúde materna em quatro hospitais e serviços de saúde mental em três centros de atenção primária. Em abril de 2018, MSF abriu uma unidade de atendimento abrangente pós-operatório no leste de Mossul.

Com mais de 1.500 profissionais no Iraque, MSF oferece cuidados de saúde primária e secundária, serviços para gestantes e novas mães, tratamento para doenças crônicas, cirurgia e reabilitação para feridos de guerra, apoio à saúde mental e atividades de educação em saúde. MSF atualmente trabalha nas províncias de Erbil, Diyala, Ninewa, Kirkuk e Bagdá.

 



[1] Quarenta por cento dos pacientes admitidos entre abril e meados de novembro de 2018 tiveram uma infecção confirmada microbiologicamente. Entre eles, mais de 90 por cento tinham uma infecção resistente a múltiplos medicamentos. Sessenta por cento dos pacientes admitidos não tiveram uma infecção confirmada (ou não apresentavam sinais clínicos de infecção ou tinham alguns sinais compatíveis com infecção, mas não foram confirmados).

 

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