Tratado por MSF, paciente volta ao convívio social em Maban

A história de Khaled assemelha-se a de muitas vítimas da violência nos campos de refugiados do Sudão do Sul, que precisam de atenção médica

Athena Viscusi retornou do Sudão do Sul recentemente. Ali, ela atuava como encarregada de MSF para a saúde mental no campo de refugiados de Jamam, em Maban. A equipe de saúde mental de Athena, composta de refugiados treinados por ela mesma em primeiros socorros psicológicos, promove atividades educacionais sobre estresse e trauma, suporte psicológico básico e detecção de casos mais graves para serem encaminhados ao encarregado de saúde mental e à equipe médica. Além disso, um grupo de 13 músicos, cantores e atores foi treinado para transmitir mensagens sobre saúde mental e serviços de MSF para a comunidade realizando performances semanais por todo o acampamento.

Abaixo, Athena conta a história de um paciente especial, que deixou marcas indeléveis na equipe.

“Khaled* é um homem de 30 anos alto e magro, das montanhas Ingessana, do estado de Nilo Azul, Sudão. Ele chamou a atenção de equipes de MSF quando vagava por nossas dependências, desorientado e desgrenhado, com um de seus amigos que trabalhava conosco. Naquela época, ainda não tínhamos um programa voltado para saúde mental, mas assim que cheguei ao acampamento, como encarregada da saúde mental, seu amigo foi enviado para encontrá-lo. Falei com ele com ajuda de um intérprete, mas ele respondeu de forma monossilábica e por mímicas. Ele contou que era casado, mas que sua mulher o havia deixado porque “a mente dele não estava boa”. Quando perguntamos se tinha filhos, ele levantou três dedos. Ele também contou que tinha sido soldado, mas não mencionou por quanto tempo e quando.

Demos medicamentos antipsicóticos a ele. Seu amigo nos garantiu que ele tomaria a medicação e pedimos a ele que levasse membros da família de Khaled até nós para que pudéssemos apurar as histórias. Ele voltou com duas tias que nos contaram que Khaled foi soldado por cerca de cinco anos. Ele havia voltado para a casa no último ano, confuso e incomunicável. Pouco tempo depois, houve um ataque e ele deixou sua casa com sua família. Suas tias nos contaram que, assim que chegaram em Jamam, a esposa de Khaled pegou as crianças e foi viver com sua família.

Khaled retornou à clínica mais uma vez por conta própria, ainda sem falar, mas sorrindo, estabelecendo melhor contato visual e vestindo roupas limpas. Ele acompanhou a mim e a meu intérprete por alguns dias, durante nossas visitas no acampamento.

Depois disso, não o vimos por algum tempo. Tentamos localizá-lo onde mora a sua família, mas nos disseram que ele estava na tenda de sua esposa. Tentamos visitá-lo lá, mas aquela parte do acampamento estava inundada e inacessível. Ele apareceu na porta da clínica numa tarde, muito sujo e claramente tendo alucinações, sacudindo a cabeça e falando sozinho. Pedimos a ele que esperasse para ser atendido por um de nossos médicos, mas ele não ficou por lá. Dissemos a todos no campo que estávamos procurando por ele, mas ninguém o levou até nós.

O secretário da clínica, Hamid, foi professor por muitos anos em Nilo Azul e conhece muitas pessoas, bem como seus relacionamentos umas com as outras. Um dia, ele reconheceu o pai de Khaled na clínica e levou-o para nos conhecer. Ele, Anur, é um sheikh (líder comunitário) em seu vilarejo. Ele nos disse que ele e seu filho não tinham mais um bom relacionamento desde que Khaled ficou doente. Khaled tornou-se bastante conhecido entre os seus, sendo visto vagando, desorientado, pelo acampamento. Ele nos contou que todos gostavam muito de Khaled e que ele era muito respeitado antes de sua doença, e também conhecido por tocar a rebaba, instrumento tradicional similar ao banjo, e cantar. Eu disse ao sheikh que meu desejo era ver Khaled tocando e cantando antes que eu deixasse o Sudão do Sul. Ele nos garantiu que faria todo o esforço possível para levar Khaled para a clínica, mas não vimos nem pai nem filho por muitas semanas.

Eventualmente, Khaled apareceu por conta própria, mostrando melhor higiene e comportamento. Nosso profissional clínico, Robert, que é também enfermeiro psiquiátrico, quis garantir que Khaled continuasse tomando os medicamentos desta vez, e pediu a ele que retornasse com um membro da família que pudesse se responsabilizar pela continuidade do tratamento.

Quando acabou a medicação, Khaled retornou à clínica sozinho para pegar mais. Ele estava calmo e agradável, sorrindo, e até me cumprimentou em inglês. A partir daí, diversas pessoas, durante nossas visitas aos acampamentos, disseram tê-lo visto e comentaram estar felizes com sua recuperação. “Khaled está bem agora. Ele está conversando com as pessoas.”

Fomos visitar a área do acampamento sob os cuidados de Sheikh Anur, pai de Khaled. Khaled veio nos cumprimentar e nos apresentou seu filho de sete anos. Uma mulher nos abordou e disse que tinha observado o progresso de Khaled. Se havíamos sido capazes de curá-lo, talvez pudéssemos ajudar seu marido, que estava recluso e não saía de sua tenda para ajudá-la a cuidar de seus oito filhos.

Enquanto falávamos com ela, Sheikh Anur se aproximou. Ele expressou sua gratidão pela cura de seu filho e disse: “Agora, ele está de volta a seu corpo”. Para demonstrar seu apreço, ele nos deu o que disse ser um poderoso protetor contra cobras. Se usá-lo, você não será picado mesmo que pise em uma cobra. Aparentemente, Sheikh Anur é um kujur, ou curandeiro, bastante respeitado.

Pedimos a Khaled que se juntasse a nós na performance musical que havíamos programado para aquele dia e ele foi. Após a peça de teatro, ele pediu um rebaba emprestado e tocou e cantou diversas canções. A multidão pedia mais. Eu soube que Khaled costumava tocar na rádio em Nilo Azul. Os músicos de nosso grupo disseram estarem honrados por tocar com ele, por ele ser tão conhecido, e que se orgulhavam de fazer parte do trabalho que tinha recuperado sua saúde.”
 

*Os nomes foram alterados para proteger a privacidade dos pacientes.
 

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