Sudão: sobreviventes relatam violência brutal em meio à guerra

“Não consigo dormir, vejo pessoas mortas diante dos meus olhos”

@Dora Naliesna

Equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) reuniram no Chade, entre os refugiados da guerra no Sudão, relatos de sobrevivência em meio ao conflito, incluindo muitos casos de violência sexual. Na região de Darfur, a violência sexual se estabeleceu como uma crise profunda que coloca em risco constante principalmente mulheres e meninas. E a verdadeira extensão da tragédia ainda é difícil de mensurar, já que o acesso a serviços de saúde é limitado no país, e com frequência as sobreviventes enfrentam barreiras significativas para buscar ajuda e relatar o que vivenciaram.

Abaixo, mulheres sobreviventes da guerra no Sudão compartilham seus relatos:

@Dora Naliesna

Quero proteção agora! Não quero ser violentada novamente.”

– Relato de uma sobrevivente de 27 anos em 06/02/2025

 

“Perdi minha mãe durante a guerra. Um dia, em junho de 2024, eu estava do lado de fora da minha casa, na cidade de El Fasher. Quando voltei, uma bomba havia caído sobre a casa. Minha mãe era a única pessoa que estava lá dentro. Tentei levá-la para o hospital, mas ela morreu antes de chegarmos lá. Depois disso, fiquei em El Fasher, mas meu pai também faleceu. Fui morar com minha irmã e seu marido. Saí de El Fasher há 33 dias, em busca de um lugar seguro.

Saímos de carro. Na estrada, fomos parados por um grupo da RSF [Forças de Apoio Rápido, na sigla em inglês]. Eles tentaram me sequestrar e me violentaram.

Tenho um certificado de enfermagem de primeiros socorros. [Quando nos pararam], a RSF pediu que eu lhes entregasse minha bolsa. Quando viram o certificado lá dentro, me disseram: ‘Você quer curar o exército sudanês, você quer curar o inimigo!’ Depois queimaram meu certificado e me violentaram. Disseram a todos os outros que ficassem no chão. Eu estava com outras mulheres, inclusive minha irmã. Eles só me violentaram por causa do meu certificado. Em seguida, um carro veio em nossa direção, com umas 17 pessoas armadas, então a RSF fugiu.

Quero proteção agora! Não quero ser violentada novamente. Não posso dizer nada à comunidade, porque seria uma vergonha para minha família. Portanto, não disse nada sobre o que aconteceu comigo até hoje. Só estou pedindo ajuda médica agora. Eu estava com muito medo de ir ao hospital. Minha família me pediu: ‘Não conte a ninguém’. Não sinto mais dor. Mas tenho pesadelos com isso.”

@Dora Naliesna

Não consigo dormir, vejo pessoas mortas diante dos meus olhos.”

– Relato de uma sobrevivente de 37 anos em 06/02/2025

 

“Deixei a cidade de El Fasher em maio de 2024 por causa do bombardeio. Dentro de El Fasher, durante o bombardeio, não havia como conseguir comida. Às vezes, quando estava tudo calmo, os homens saíam à procura de algo para comer.

Meu vizinho morreu por causa de uma bomba. Minha prima também morreu por causa de um bombardeio quando sua casa foi destruída. Então, como a situação estava piorando, fomos para o acampamento de Zamzam, mas também saímos de lá por causa dos bombardeios [e fomos para Tawila]. Depois, saímos da cidade de Tawila porque ouvimos dizer que no Chade há mais ajuda e alimentos das organizações.

Na estrada de Tawila para o distrito de Kabkabiya, viajamos em um comboio de 55 carros. Havia carros com homens armados que nos escoltavam. Chegamos a um posto de controle da RSF antes de Kabkabiya. Eles nos pediram [dinheiro] para nos deixar entrar em Kabkabiya.

Os homens armados que nos escoltavam conversaram com eles e lhes disseram: ‘Não podemos lutar com vocês, estamos protegendo essas pessoas até chegarmos a um lugar seguro. Se quiserem lutar conosco, estamos prontos, mas, por favor, nos deixem ir.’ Eles disseram ‘não’ e começaram a atirar. Começaram a matar os homens armados com facas e armas. Mataram todos eles.
Disseram a todas as mulheres e crianças para ficarem no chão. Nós estávamos no chão, e eles nos disseram para abaixar a cabeça. Se você levantasse a cabeça, eles atirariam. As crianças estavam com muito medo. Algumas fugiram, inclusive meus seis filhos. Nós os encontramos dois dias depois.

Eles levaram todos os carros e tudo o que tínhamos. Todos os motoristas morreram. Mais carros e camelos chegaram. Para os [homens armados] que chegaram depois, não havia mais nada para levar. Então levaram pessoas com eles e pediram dinheiro para libertá-las.

Não consigo dormir. Vejo pessoas mortas diante dos meus olhos. Durante quatro dias após o que aconteceu em Kabkabiya, perdi a memória, não conseguia nem lembrar os nomes dos meus filhos. Agora, ela voltou.

Atualmente, o mais difícil é encontrar algo para comer. Meu marido é responsável por quatro famílias aqui. Só ele trabalha. O cabelo do meu marido ficou branco, porque ele não sabia como alimentar as pessoas.”

@Dora Naliesna

Para nós mulheres, era ‘somente’ espancamento e violência sexual. Para os homens, era a morte.”

– Relato de uma sobrevivente de 27 anos em 19/02/2025

 

“Durante um mês, ninguém podia sair da cidade de Murnei: se saísse, era violentada ou espancada. Soube de alguém que foi violentada ao sair.

Então o conflito foi para dentro da cidade. Minha casa foi incendiada. Eu e minha irmã fugimos para Sharg Anil. Na estrada, dois homens atacaram a mim e minha irmã. Minha irmã foi violentada. Eu estava com meu bebê nos braços. Alguém disse: ‘Vou matar seu filho com uma faca’. Comecei a chorar e implorei para que ele não matasse meu bebê, e ele me deixou ir. Mas violentaram minha irmã.

Quando chegamos a Sharg Anil, não tínhamos casa. Algumas pessoas vinham à noite para violentar as mulheres e levar tudo, inclusive os animais. Ouvi algumas mulheres sendo violentadas à noite.

Os homens estavam escondidos em banheiros ou em alguns cômodos que eles podiam trancar, como meu marido e meus irmãos. Caso contrário, seriam mortos. As mulheres não se escondiam, porque para nós era ‘somente’ espancamento e violência sexual. Para os homens, era a morte.

Ainda há violência lá fora [de Murnei], algumas mulheres são espancadas e violentadas. É perigoso ir para as fazendas. Não me sinto segura, mas ainda vou. Vamos com outras mulheres. Os homens não vão, têm medo de serem mortos – isso aconteceu com alguém que conheço: ele foi para a fazenda e foi atacado e baleado. As pessoas o levaram para o hospital, mas ele morreu.”

@Dora Naliesna

Eles pediram às pessoas que tirassem as roupas das crianças. Quando viam que era um menino, eles o matavam.”

– Relato de uma sobrevivente de 27 anos em 07/02/2025

 

“A guerra começou em nosso vilarejo com o som de tiros. Depois, ouvimos a explosão de uma bomba. Tentamos fugir. A bomba caiu na grama e pegou fogo. Algumas pessoas tiveram os pés queimados. Mais tarde, elas foram transferidas para uma clínica, a cerca de 10 km do nosso vilarejo. Também mandamos para lá uma menina e uma mulher que foram violentadas. Uma tinha 13 anos de idade e a outra tinha 27. Ela tinha três filhos.

Mais tarde, também fiquei sabendo de três meninas que foram trabalhar juntas e um grupo de criminosos as pegou na estrada. Uma delas estava menstruada, então eles a espancaram até que ela precisou ir para um hospital.

Decidimos ir embora desde o início da guerra. Primeiro, ficamos em um outro vilarejo por uma semana. Mas a guerra começou lá de repente. Quando chegaram, começaram a atirar em homens e meninos, até mesmo nas crianças de 3 e 4 anos. Eles pediram às pessoas que tirassem as roupas das crianças. Quando viam que era um menino, eles o matavam.

Soubemos que eles estavam matando meninos antes de chegarem, então decidimos levar nossos meninos para longe do vilarejo. Eles mataram 32 homens. Meu primo foi morto. Nossos meninos reconheceram os homens armados porque, antes da guerra, vivíamos a mesma vida na mesma região.

Nos sentimos seguros aqui [em Tine, Chade], mas há dois dias ouvimos o som de bombardeios. Meus filhos fugiram, estavam com muito medo, mas nada aconteceu aqui, é uma zona segura. Perdi tudo o que tinha, mas ainda estou viva.

@Dora Naliesna

Eles nos violentaram na estrada, em público. Eu queria perder minha memória depois do que vivi.”

– Relato de uma sobrevivente de 17 anos em 10/02/2025

 

“Estávamos em casa, e de repente começamos a ver pessoas com seus filhos fugindo para a rua. Minha irmã foi ao mercado e, quando voltou, disse: ‘A RSF está atacando, todos estão fugindo. Por que vocês ainda estão aqui? Vão embora’. Algumas pessoas de Hajar al Assad, um vilarejo antes do distrito de Kulbus, que tinha acabado de ser atacado, nos avisaram que a RSF estava chegando. Depois disso, começamos a ouvir o som de bombardeios e armas.

Tentamos fugir. Eu estava em um grupo com cerca de 30 pessoas. Minha família fugiu em direções diferentes e nos encontramos mais tarde na estrada.

Nos arredores de Kulbus, vimos a SAF [Forças Armadas Sudanesas, na sigla em inglês] indo na direção oposta, em direção à cidade. A RSF começou a atirar contra eles. Alguns de nós foram atingidos por balas, outros foram mortos. Vi um menino do vilarejo ser alvejado, e ele morreu na estrada. Outro garoto de 16 anos foi atingido por tiros nas duas pernas.

Aqui [no acampamento no Chade], as condições de vida são muito difíceis. Perdemos tudo. Não temos comida nem cobertores. À noite, o clima é muito frio. Um dia, decidi voltar para a Kulbus (Sudão) para ver um parente. Fui com um amigo. Isso foi há três meses. Quando chegamos a Kulbus, vimos um grupo de três mulheres com alguns homens da RSF que as vigiavam. A RSF ordenou que ficássemos com elas.

Eles nos disseram: ‘Vocês são esposas do exército sudanês ou suas filhas’. Eles disseram a uma das mulheres mais velhas: ‘Por que você levou todas as meninas para o Chade? Por favor, nos dê as meninas’. Logo em seguida, nos bateram e nos violentaram.

Eles nos espancaram e nos violentaram ali mesmo, na estrada, em público. Eram nove homens da RSF. Sete deles me violentaram.

Tínhamos avisado à nossa família que iríamos para lá, então, quando viram que estávamos atrasadas, vieram nos procurar. Eles nos procuraram, nos encontraram e nos trouxeram de volta para o Chade. Só as mulheres vieram, porque é perigoso para os homens.

Eu queria perder minha memória depois do que vivi.

Os ataques brutais e a violência sexual no Sudão precisam ser interrompidos. As partes em conflito devem respeitar o Direito Internacional Humanitário, proteger os civis e garantir acesso a cuidados médicos e humanitários para a população.

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