Sudão: pessoas deslocadas após ataque em Zamzam relatam precariedade e violência

MSF vem ampliando trabalho na cidade de Tawila, onde muitas famílias buscam refúgio, mas necessidades vão muito além da capacidade de resposta

Criança recebe água de uma enfermeira de MSF, no posto de saúde de Tawila Umda. ©Thibault Fendler/MSF

Três semanas após a ofensiva terrestre das Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês) no acampamento de Zamzam, Sudão, ainda há relatos de que os combates em El Fasher – região próxima – se intensificaram, forçando o deslocamento de pessoas para Tawila, no estado de Darfur do Norte. Com a escassez de comida em Zamzam – onde, segundo classificação dada em agosto de 2024, prevalecem condições de fome – e muitos tendo sido gravemente feridos no ataque ao acampamento, as pessoas chegam a Tawila em um estado de vulnerabilidade extrema, sobrecarregando o serviço de emergência e nutrição do hospital apoiado por Médicos Sem Fronteiras (MSF) na cidade.

“Eles vieram com metralhadoras. Atacaram e mataram pessoas, inclusive crianças. Queimaram nossa casa. Cometeram violência sexual contra as mulheres. Mataram, saquearam”, relata Mariam*, de 40 anos, que chegou a Tawila três dias após o ataque a Zamzam. “Mesmo antes do ataque, as pessoas já haviam morrido de sede e de fome por causa do cerco imposto a Zamzam no ano passado. Tudo era caro.”

Ela chegou com a mãe, as irmãs, os filhos e sobrinhos. Uma família de 20 pessoas. Todos eles agora passam seus dias apertados uns contra os outros sob o abrigo improvisado que construíram com alguns galhos e um pedaço de tecido, compartilhando a pouca sombra que ele proporciona.

“Aqui não tem comida. Algumas pessoas compartilharam um pouco de farinha de milheto, que usamos para fazer mingau. Tiramos água de um tanque, mas só nos permitem encher um galão por família, e somos 20 pessoas. Só temos um cobertor para todo nós”, lamenta Mariam

A certa altura, havia quatro pacientes em um leito porque não tínhamos espaço suficiente.”
– Tiphaine Salmon, coordenadora da equipe de enfermagem de MSF

Desde 12 de abril, quando as pessoas começaram a chegar em Tawila vindas de Zamzam, as áreas ao redor da cidade foram completamente transformadas, com dezenas de milhares de pessoas vivendo em abrigos improvisados em acampamentos que estavam totalmente desabitados apenas algumas semanas atrás.

“Há quatro dias, ficamos aqui sem nada: sem paredes, sem teto”, diz Ibrahim*, 42 anos, que fugiu de Zamzam a pé com 11 de seus familiares. Carregou um dos filhos nos ombros e outro nas costas por cinco dias. É a quarta vez em 10 anos que ele é deslocado em circunstâncias semelhantes.

Ibrahim descreve como os soldados entraram nas casas das pessoas, as levaram para fora e abriram fogo. Três de seus irmãos foram mortos assim. A caminho de Tawila, ele foi saqueado e testemunhou pessoas sendo espancadas com tanta força que não conseguiam mais se mover.

Leia também: dois anos de guerra no Sudão

“Debaixo dessa árvore está tão lotado, falta água, abrigo… não tem o que comer, todo mundo está com fome”, explica ele. “Estamos recebendo alguns alimentos das cozinhas comunitárias. Às vezes, conseguimos um pouco de arroz quando distribuem as refeições, mas se não, devemos esperar até o dia seguinte para comer alguma coisa. Pegamos água de um poço, mas tem muita gente, e temos que esperar horas para poder beber.”

As equipes de MSF montaram dois postos de saúde nos principais locais de chegada para fornecer água e apoio nutricional e médico imediato às pessoas recém-chegadas, além de encaminhar pacientes em estado crítico para o hospital local de Tawila, que MSF apoia desde outubro de 2024.

Posto de saúde de MSF em Tawila poucos minutos antes de abrir, localizado no principal ponto de chegada de pessoas vindas de Zamzam e El Fasher. ©Thibault Fendler/MSF

Tiphaine Salmon, coordenadora da equipe de enfermagem de MSF, estava trabalhando no hospital no dia em que a chegada em massa de casos graves começou, em 12 de abril.

“A sala de emergência estava sobrecarregada. Nos primeiros dias, o número de pacientes no hospital quase dobrou. A certa altura, havia quatro pacientes em um leito porque não tínhamos espaço suficiente. Muitas pessoas tiveram ferimentos a bala e por explosão – tratamos 779 pessoas nas últimas três semanas, incluindo 138 crianças. De todos os pacientes, 187 eram casos graves. O mais novo que vi foi um bebê de sete meses de vida com um ferimento de bala que passou por baixo do queixo e no ombro. Também recebemos pacientes a partir de um dia de vida com desidratação. Muitas crianças chegam sem os pais, e muitos pais procuravam desesperadamente por seus filhos”, relembra Salmon.

Crianças sofrem situação especialmente preocupante

Ao mesmo tempo, nossas equipes no hospital testemunham uma explosão de internações em nosso centro de nutrição terapêutica intensiva, que trata crianças menores de 5 anos de idade que sofrem de desnutrição aguda grave, além de outras comorbidades.

Na semana seguinte ao intenso aumento da chegada de pessoas deslocadas, as admissões cresceram quase 10 vezes: de uma média de 6 a 7 por semana, para mais de 60. Eram em sua maioria crianças de Zamzam: um lembrete da situação nutricional no acampamento, afetado pela fome.

Criança de 4 anos de idade é atendida no posto de saúde de MSF em Tawila Umda. Ela foi ferida por um tiro enquanto fugia do acampamento de Zamzam com a família. ©Thibault Fendler/MSF

Para piorar ainda mais a situação, teve início uma suspeita de surto de sarampo em Tawila, em março. No hospital, MSF tratou mais de 900 casos suspeitos da doença desde o início de fevereiro, com mais de 300 em estado tão grave que precisaram ser hospitalizados.

O cenário preocupante levou nossas equipes a começar uma campanha de vacinação em larga escala na cidade na primeira semana de abril, atingindo 18 mil crianças menores de 5 anos de idade.

Mas, uma semana após o início da chegada massiva de pessoas vindas de Zamzam, nossas equipes examinaram vários casos suspeitos entre crianças que haviam acabado de chegar do acampamento, o que significa que o sarampo já havia começado a se espalhar nos locais de deslocamento.

● Leia mais: “Parece que ninguém se importa com o conflito no Sudão”

A desnutrição e o sarampo, em locais com alta densidade populacional e baixas condições de higiene, podem ser uma combinação especialmente mortal, com consequências desastrosas, para as crianças mais novas.

MSF continua ampliando suas atividades em Tawila. Além de realizar centenas de consultas médicas por dia, doamos alimentos para cozinhas comunitárias locais, permitindo que elas preparem e distribuam mais de 16 mil refeições por dia. Também fornecemos 100 mil litros de água limpa diariamente e temos planos adicionais para construir 300 latrinas.

Mas as necessidades continuam imensas e ultrapassam muito a nossa capacidade de resposta. Embora outros atores também tenham se mobilizado, e uma primeira distribuição de alimentos em massa tenha ocorrido; a resposta humanitária é urgente e precisa ser ampliada rapidamente.

Pedimos que as agências da Organização das Nações Unidas (ONU) aumentem substancialmente sua presença em Tawila, para que seja coordenada uma resposta que atenda às necessidades crescentes no local.

*Nomes alterados

 

 

Compartilhar