Sudão do Sul: cuidados de saúde na linha de frente de batalha

Enfermeira de MSF relata seu trabalho nas cidades mais atingidas pelo conflito no país

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Pouco mais de um ano após o início do atual conflito no Sudão do Sul, a situação humanitária no país continua dramática. A enfermeira Siobhan O’Malley trabalhou em Malakal e Bentiu, cidades importantes e atingidas fortemente pelos combates. A seguir, ela reflete sobre o trabalho na linha de frente de batalha, levando cuidados médicos de forma neutra e imparcial aos mais necessitados.

 “Quando cheguei a uma das maiores cidades do Sudão do Sul, Malakal, no estado do Alto Nilo, em fevereiro de 2014, o conflito já estava em curso. Haviam avisos de que a cidade logo seria tomada por forças da oposição. Foi muito estranho ver várias pessoas deixando a região antecipando-se aos combates e caminhando rumo ao complexo da Organização das Nações Unidas (ONU) em busca de segurança. Eu me lembro de uma mulher, que não levava consigo nenhum pertence, apenas um bebê em seus braços. Os dias que se seguiram foram tensos, na medida em que ouvíamos tiros à distância e esperávamos que algo acontecesse.

As forças de oposição atacaram no meio da noite. Nós havíamos sido forçados a abandonar nossa base na cidade e nos instalarmos no complexo da ONU alguns dias antes para nossa própria segurança. Eu estava dormindo em uma tenda com outros membros da equipe quando o coordenador do projeto nos acordou e disse para nos prepararmos, porque algo estava acontecendo. As barreiras internas no entorno da área do complexo em que vivíamos tinham sido derrubadas, na medida em que deslocados tentavam chegar o mais perto que podiam em busca de proteção extra. De olhos arregalados e em silêncio, centenas de mulheres e crianças estavam reunidas debaixo de árvores e ao lado de nossas tendas, na escuridão.

O chão começou a tremer na medida em que os bombardeios tiveram início próximo ao complexo e nós fugimos para o abrigo, uma coleção de seis contêineres fortificada por sacos de areia. As mulheres e as crianças fugiram conosco. Era extremamente quente lá dentro, com o maior número possível de pessoas possível juntas. Ficamos lá por horas, tentando ouvir o que estava acontecendo do lado de fora.

Relatos de mortes em massa começaram a chegar e nós saímos do abrigo e dirigimos por algumas centenas de metros em meio a multidões de pessoas exaltadas até o complexo do hospital. O cheiro de queimado estava muito forte, cinzas estavam caindo do céu e haviam torres de fumaça negra no horizonte enquanto Malakal pegava fogo. Pela janela do jipe, eu vi uma menina aterrorizada, de cerca de cerca de 12 anos, com um olhar selvagem. Ela balançava uma machete de um lado para o outro para tentar se proteger.

No hospital, tratamos feridos à bala, ferimentos causados por machetes e trauma contuso. Com o estoque de suprimentos em vias de acabar, nós atendemos paciente por paciente. Nos meses restantes de minha participação no projeto, concentramos esforços no tratamento de feridos de guerra.

Eu senti a necessidade de voltar ao Sudão do Sul no fim naquele ano, e estou trabalhando atualmente como enfermeira obstétrica em Bentiu, cidade do estado de Unity, também afetado pelo conflito. MSF está oferecendo serviços de saúde para cerca de 40 mil pessoas abrigadas no complexo da ONU e está administrando clínicas móveis para ajudar nossa população dos arredores da região.

Assim como em Malakal, o antigo hospital da cidade de Bentiu foi destruído durante os combates e agora está completamente disfuncional. Os edifícios modernos do hospital estão infestados de morcegos e roedores, equipamentos médicos têm sido saqueados ou vandalizados e o complexo está repleto de suprimentos médicos. Nós limpamos um dos edifícios e montamos uma clínica temporária que opera vários dias por semana. Eu administro uma sessão especial para mulheres grávidas.

Durante os atendimentos nessas clínicas de pré-natal, nós identificamos mulheres com gestações de alto risco, que pode se caracterizar por uma mulher grávida de gêmeos ou trigêmeos ou uma mulher com um bebê que não está na melhor posição para nascer. Aquelas que sofreram complicações em partos anteriores, como perda excessiva de sangue, retenção de placenta ou bebê prematuro, são encaminhadas para darem à luz na instalação de MSF. Todas as mulheres grávidas têm um mosquiteiro para prevenir a malária e as mulheres que estão próximo de parir ganham um kit parto seguro, que consiste em uma lona plástica, dois cobertores (um para limpar o bebê e outro para envolvê-lo), uma barra de sabão, um par de luvas e uma lâmina estéril para cortar o cordão umbilical.

Recentemente, uma mulher que havia sido estuprada chegou na clínica de pré-natal. Ela queria descobrir se estava grávida, e ficou aliviada quando descobriu que não estava. Após o tratamento para infecções sexualmente transmissíveis, ela deixou a clínica assim que pôde e não queria que sua visita fosse documentada. É difícil responder à violência sexual no Sudão do Sul. Há muitas barreiras que impedem os sobreviventes de estupro de terem acesso aos cuidados que oferecemos. A confidencialidade é um grande problema, e muitas mulheres se preocupam que suas famílias ou comunidade em geral descubram o ocorrido, caso isso signifique a impossibilidade de se casarem novamente.

Muitos dos relatos de sobreviventes de violência sexual são angustiantes. Uma mulher que foi detida por homens armados e estuprada repetidas vezes me disse “se você não aceitar ser estuprada, então eles te matam.” No entanto, vivi alguns momentos positivos: tive o prazer de dizer a uma mulher que havia sido estuprada que ela era HIV negativo. Seu rosto se iluminou com um enorme sorriso de orelha a orelha.

Trabalhando em Malakal e em Bentiu, eu vi em primeira mão o valor da neutralidade e da imparcialidade de MSF quando se trata de oferecer cuidados médicos – e o quanto isso é importante para a sobrevivência das pessoas em tempos de conflitos. Trabalhando no Sudão do Sul, eu ajudei os mais vulneráveis, mulheres e seus filhos, mas nem sempre de formas que normalmente faria

Após sua participação no projeto, Siobhan voltará ao seu emprego regular no laboratório e na ala de partos no hospital regional de Thunderbay, no Canadá.

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