Síria, o inaceitável fracasso humanitário

Por Dra. Joanne Liu, presidente internacional da organização humanitária Médicos Sem Fronteiras

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A guerra na Síria entrou em seu quinto ano no último domingo, dia 15. A brutalidade dos confrontos, que não faz distinção entre civis e combatentes, continua sendo sua marca registrada. Centenas de milhares de pessoas foram mortas e metade da população fugiu por dentro da própria Síria ou para países vizinhos. As cidades sírias estão sitiadas e sem acesso a qualquer assistência externa. As pessoas estão encurraladas entre frentes de batalha que continuam se alternando, na medida em que tropas do governo e uma miríade de forças opositoras promovem confrontos.

Milhares de médicos, enfermeiros, farmacêuticos e paramédicos foram mortos, sequestrados ou deslocados pela violência, deixando uma enorme lacuna em termos de especialidade médica e experiência. Dos cerca de 2.500 médicos que trabalhavam em Aleppo no início do conflito, menos de 100 permanecem nos hospitais que ainda funcionam na cidade.

Os pedidos por ajuda da população síria estampam as redes sociais, mas, ao que parece, tornaram-se um pano de fundo de murmúrios da guerra. Com milhões de pessoas em necessidade de assistência, a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) deveria estar operando alguns de seus maiores programas médicos de seus 44 anos de história.  Mas isso não está acontecendo. Por quê?

Quando o conflito teve início, MSF passou a oferecer suprimentos às redes de profissionais sírios da área médica para o tratamento de feridos. Não conseguimos autorização do governo para trabalhar no país. Mas com o engajamento de grupos armados de oposição, negociamos o acesso às áreas sob seu controle no norte, e passamos a oferecer ajuda direta à população.

Em 2013, mantínhamos seis hospitais em regiões controladas pela oposição, oferecendo milhares de consultas, realizando partos e intervenções cirúrgicas. As negociações com os inúmeros grupos armados, embora desafiadoras, nos permitiram enviar equipes médicas internacionais para trabalharem lado a lado com colegas sírios. Tivemos de renegociar nossos acordos com diferentes comandantes locais repetidas vezes para garantir respeito a nossa presença, a segurança de nossas equipes e a não interferência em nossas atividades médicas. Os grupos se alternavam com frequência e nós tivemos de renegociar nossos acordos com líderes de grupos como Jeish el Mujahideen, Islamic Front, Jahbat Al Nusra, diferentes facções do Exército de Libertação da Síria e o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS, na sigla em inglês), que mais tarde teve seu nome alterado para Estado Islâmico, entre outros.

No entanto, nunca pudemos oferecer assistência direta à maioria da população síria encurralada no coração do conflito. A violência e a insegurança, os ataques a instalações e profissionais de saúde e a ausência de autorização do governo para trabalhar na Síria foram alguns dos principais obstáculos para ampliar as atividades médicas. Ainda assim, por mais insatisfeitos que estivéssemos com nossas limitações, ainda fazíamos mais do que fazemos hoje.

Em meados de 2013, quando combatentes do ISIS, posteriormente renomeado como Estado Islâmico (EI), chegaram a regiões onde MSF mantinha a maioria de seus hospitais, foram firmados acordos com seus comandantes que garantiam que não haveria interferência deles na administração dos hospitais e que as estruturas médicas e pessoal de MSF seriam respeitados. No entanto, em janeiro de 2014, o ISIS raptou 13 membros da organização, dos quais oito eram colegas sírios, que foram libertados após algumas horas. Os demais cinco membros da equipe internacional foram mantidos em cativeiro por cinco meses. Esse rapto antecipou a retirada de nossas equipes internacionais e o fechamento de instalações de saúde de MSF nas regiões controladas pelo ISIS.

Líderes locais do renomeado Estado Islâmico (EI) pediram repetidas vezes a MSF que retomasse suas atividades médicas nas regiões sob seu controle. Mas nós não podemos considerar isso, uma vez que o EI atacou nossas equipes e quebrou um acordo com o qual tinham se comprometido. Garantias fundamentais não foram dadas pela liderança do EI de que pacientes e membros das equipes de MSF não seriam levados ou feridos. MSF ainda opera três hospitais, gerenciados por equipes sírias da organização, um em Atmeh e outro em Aleppo, além de três outras estruturas de saúde no norte do país. Mas a assistência é limitada.

Bombardeios aéreos em Aleppo mataram e feriram milhares, além de terem destruído casas e infraestrutura. Atualmente, o acesso a cuidados de saúde no leste de Aleppo é impossível devido à falta de suprimentos e pessoal médico qualificado. Equipes de MSF observaram um aumento no número de complicações médicas, como complicações obstétricas, abordo e partos prematuros. As dificuldades na oferta de cuidados pós-operatórios e a escassez de antibióticos estão causando infecções e o aumento da taxa de mortalidade entre os pacientes.

Na medida em que fomos forçados a reduzir as atividades médicas diretas na Síria, continuamos prestando suporte a médicos sírios em sua árdua tarefa de tratar pacientes. A doação de medicamentos e material médico é essencial para o pessoal sírio que atua nas regiões sitiadas e de conflito ativo. Suprimentos médicos são despachados por estradas perigosas cheias de pontos de controles. A probabilidade de confisco dos materiais, prisões ou mesmo morte é alta. Essa forma de suporte certamente fica muito aquém das necessidades. Muitas das instalações que recebem apoio não têm equipamentos nem pessoal suficientes, e não podemos oferecer assistência direta para atender suas necessidades.

Um diretor médico em uma área sitiada próximo de Damasco nos disse que seu hospital improvisado recebeu 128 pacientes feridos após um grave bombardeio a um mercado lotado. Sua equipe pôde salvar 60 pessoas, mas 68 pacientes morreram. A equipe usou praticamente todo o estoque de suprimentos médicos que tinham em um só dia.

Hoje, equipes de MSF trabalham em algumas das mais complexas zonas de guerra, do Afeganistão ao Sudão do Sul e Iêmen. Recentemente, visitei um centro de trauma de MSF no norte do Afeganistão que ilustra o tipo de assistência que MSF deveria ser capaz de oferecer à população da Síria. No centro mantido por MSF no norte da cidade de Kunduz, combatentes feridos estão deitados em leitos lado a lado com inimigos e civis, todos precisando de cuidados médicos. Colegas afegãos e equipe internacional que trabalham no hospital são aceitos por todos os grupos nessa região tão disputada do país. Condições de trabalho seguras e a não interferência nas atividades médicas foram negociadas com todas as partes envolvidas, inclusive com o governo afegão, com a liderança do Talibã (Emirados Islâmicos do Afeganistão) e com as Forças Internacionais de Segurança Internacional (ISAF, na sigla em inglês), lideradas pelos Estados Unidos.

Na medida em que um esforço humanitário internacional em larga escala é desesperadamente necessário na Síria, isso não vai acontecer até que as partes envolvidas no conflito negociem com organizações de ajuda e identifiquem ações práticas que as permitam operar de forma segura e efetiva. Todos os grupos armados deste conflito precisam permitir o acesso humanitário aos civis, já que são obrigados a fazê-lo, de acordo com a legislação humanitária internacional.

A população síria sofreu de forma inimaginável nos últimos quatro anos. A contínua obstrução da ajuda humanitária contribui enormemente para esse sofrimento. Às pessoas na Síria está sendo negada a assistência mais essencial, e o mundo não pode continuar virando o rosto. Nós precisamos e devemos fazer mais por elas.
 

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