Ser sudanês em acampamento em Calais, França: “Saímos de um inferno para chegar a outro”

Sudaneses relatam experiência de vida no acampamento “Selva”, em Calais, e falam sobre o sentimento de incerteza em relação ao futuro após ameaça de fechamento do espaço

Ser sudanês em acampamento em Calais, França: “Saímos de um inferno para chegar a outro”

Por Mohammad Ghannam, MSF

Abdel Aziz caminha pelo acampamento “Selva” carregando seus alimentos em uma sacola preta de plástico. Usando uma calça escura e uma camiseta branca com o desenho de um sol estampado nas costas, ele começa a preparar o almoço em meio a uma floresta de barracas, enfrentando mais um dia sob as nuvens escuras de Calais.

Assim como outros imigrantes sudaneses na “Selva”, o ex-prisioneiro de 28 anos de Darfur – uma região do tamanho da França – dá um relato angustiante sobre o sofrimento vivido tanto em sua terra natal como na jornada até chegar à França. Ele é membro da minoria Fur, e por quatro meses foi preso, torturado e ameaçado por forças do governo, tudo por ter participado de uma manifestação que pedia por mudanças políticas e pelo fim da discriminação.

“Durante todos os dias em que fiquei preso, decidi que sairia do Sudão no instante em que eu fosse liberado. Em janeiro de 2016, eu fui jogado na rua apenas com as minhas roupas íntimas. Assim que pude, fugi para o Egito. Fiquei três meses lá. Me registrei na Agência das Nações Unidas para Refugiados e contei a eles a minha história, mas me disseram que meu processo de solicitação de asilo levaria muito tempo”, diz Abdel Aziz.

Ele estava ficando sem dinheiro e não conseguia encontrar trabalho. Então percebeu que sua única alternativa seria arriscar tudo e tentar chegar à Europa. “Em uma manhã, me juntei a outros 600 sudaneses em um bote de pesca de madeira que saía de Alexandria. Passamos oito noites no mar até chegarmos à Itália. Durante três dias, eu andei de Ventimiglia (no norte da Itália) até Nice (no sul da França)”, relembra.

Desde que chegou à “Selva”, há dois meses, ele deseja encontrar uma maneira de chegar à Grã-Bretanha, onde seus dois irmãos vivem.

Mas com a construção de um muro que tem como objetivo impedir os imigrantes de fazerem a travessia e com o voto do governo francês de destruir a “Selva” de uma vez por todas, criando uma sombra sobre as esperanças dos residentes do acampamento, Abdel Aziz e outros sudaneses se sentem cada vez mais desesperados.

Hoje, os sudaneses constituem o maior grupo nacional na “Selva” – eles são 3 mil em um total de 10 mil pessoas, de acordo com voluntários de organizações locais.

Tratado como um criminoso

Anos de violência e medo em seu país de origem somados às sombrias condições de vida na “Selva” fizeram com que ele perdesse quase toda a esperança. Mas ele ainda se agarra a uma vaga expectativa de que as autoridades oferecerão alguma solução aos refugiados.

“Eu não posso lutar contra o governo. Ninguém pode. Mas precisamos de uma alternativa. As pessoas já estão emocionalmente exaustas, e estaremos acabados se realmente fecharem a ‘Selva’. Não é um ótimo lugar para se viver, mas é o único lugar disponível para nós neste momento”, diz Abdel Aziz.

Mohammad, um jovem de 18 anos que também é de Darfur, concorda.

“A ‘Selva’ é o único lugar em que podemos viver de graça”, diz ele, denunciando o que descreve como um tipo de labirinto de escolhas impossíveis que seus compatriotas enfrentam durante sua jornada. “Primeiro você foge da morte no Sudão. Depois você vai para a Líbia, onde há muitas milícias e a situação é caótica. Te acusam de ser colaborador do regime de Gaddafi, porque ele usava mercenários africanos durante a guerra civil. Você pode ser sequestrado ou até mesmo morto.”

“Então você vai até a Itália e é tratado como um criminoso. Você é preso e espancado até que aceite que colham suas impressões digitais”, diz ele, se referindo à primeira etapa do processo de solicitação de asilo. Sob a Convenção de Dublin, o asilo deve ser procurado na primeira nação europeia em que as impressões digitais forem colhidas. Mas muitos resistem em solicitar asilo na Itália, que está sobrecarregada de refugiados e onde recém-chegados carecem de assistência.”

“Depois você chega à França e solicita asilo, que pode ser negado porque você já registrou suas digitais na Itália – onde você não tinha exatamente uma escolha. Então, você decide que a única maneira de seguir a viagem é indo até a ‘Selva’ para chegar ao Reino Unido. Mas você fica preso ali, porque, diferentemente de outras nacionalidades, você não tem dinheiro para pagar a um traficante e ele te levar até o Reino Unido. Você fica preso”, diz ele.

Mohammad chama a ameaça de acabar com a “Selva” de “deboche”, e diz: “Se eles fecharem aqui, provarão que tudo o que falam sobre direitos humanos na Europa é uma mentira.”

“Eu não quero ficar na França”

Diante do fechamento iminente do campo e da construção do muro, Abu Ali, de 27 anos, considera solicitar asilo na França.

“Não somos sírios. Como sudaneses, podemos não ser aceitos aqui”, ele teme.

Abu Ali, que já está há quatro meses na “Selva”, relembra suas seis semanas no bairro de La Chapelle, em Paris, que sedia um ponto não-oficial de reunião de pessoas sem status legal no país. “Eu queria morrer”, diz ele. “A polícia nos sobrecarregava demais. Uma vez fiquei preso por 24 horas. A França oprime os refugiados. Eu não quero ficar na França.”

Neste momento, aparentemente não há respostas para a infinidade de perguntas que os sudaneses da “Selva” se fazem. Ainda assim, Max não desistiu de chegar à Grã-Bretanha.

Sua mão está envolta em um gesso azul, mas mesmo assim ele ajuda um colega a montar sua tenda na terra úmida. “Eu quebrei meu pulso quando caí do alto de um caminhão”, conta ele, lembrando de uma proposta recente para cruzar o canal. "Saímos de um inferno para chegar a outro. Do inferno do Sudão ao inferno da Líbia, e agora ao inferno da ‘Selva’. Somos apenas pessoas pobres tentando achar um lugar para viver.”

Max também se pergunta o que acontecerá com os sudaneses se a “Selva” for fechada. “Deixem que eles se livrem disso. Mas, por favor, nos deixem chegar à Grã-Bretanha.”

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