Seis anos em uma prisão na Síria: a luta de uma mãe pela sobrevivência

“Fui levada para a solitária enquanto minhas filhas eram trancadas em outra cela. Eu não sabia nada sobre elas”

Ilustração feita com base no depoimento de Suha © Dora Naliesna

Ao longo de quase 14 anos de guerra, as prisões arbitrárias na Síria se tornaram cada vez mais comuns. Milhares de pessoas foram mantidas sob custódia sem julgamento ou investigação, muitas vezes submetidas a lesões físicas, traumas psicológicos e condições crônicas de saúde após anos de abusos sistemáticos, tortura e negligência.

Esse é o caso de Suha*, de 50 anos de idade, que passou seis anos sendo transferida de uma cela para outra. Mesmo diante da violência e da privação, seu desejo por liberdade nunca diminuiu. Hoje, ela conta sua história na clínica de Médicos Sem Fronteiras (MSF) em Damasco, após a queda do antigo governo sírio, em dezembro de 2024, quando os portões das prisões no país foram abertos.

Fui levada para a solitária enquanto minhas filhas eram trancadas em outra cela. Eu não soube nada sobre elas.”

“Durante a guerra na Síria, vimos jovens serem presos diante dos nossos olhos. Alguns voltaram em sacos mortuários, outros nunca retornaram. Eu tinha a sensação de que a minha vez estava chegando. Participar de protestos exigindo liberdade [dessas pessoas] foi o meu ‘crime’.

Uma única ‘denúncia’ foi suficiente para me privar de toda a liberdade por seis anos. Fui presa junto com minhas seis filhas e minha neta, que ainda não tinha um ano de idade. Disseram: ‘em duas horas vamos liberá-la’, enquanto nos aproximávamos do túnel Mezzeh, na capital Damasco – não havia absolutamente nenhuma luz no final daquele túnel. Tudo o que eu conheci durante aquele período foi o frio, o horror e o número de azulejos na minha cela.

Eles me convenceram de que ninguém se importaria conosco, que nada os impediria de machucar minhas filhas.”

Quando chegou o momento da investigação, meu coração disparou. Eu não me importava com os espancamentos que sofria, esperando que, quando eles parassem, eu descobriria o destino das minhas filhas. Mas assim que abriam a boca, ameaçavam a segurança da minha família se eu não confessasse tudo. Eles me convenceram de que ninguém se importaria conosco, que nada os impediria de machucar minhas filhas, a não ser a ‘verdade’.

Voltava para a solitária, depois para a investigação; um turbilhão sem fim. Certa vez, quando estava na minha cela, os ouvi atrás da porta falando sobre uma das minhas filhas, menor de idade, que algo ruim havia acontecido com ela. ‘A menina está sangrando? Leve para o médico.’ Na sala de investigação, eles conduziram a conversa sobre esse episódio, até que comecei a imaginar um daqueles homens despindo minha filha.

Eu não sabia se era apenas uma ameaça. Não sabia até onde eles poderiam ir. Naquele momento, foi como se eu me dissociasse. Me tornei um amontoado de raiva e lágrimas. Comecei a responder às perguntas dele sem pensar, repetindo o cenário que ele achava ser a verdade. Então ele me perguntou: ‘Por que esse desespero todo? Nós não faríamos isso’. Mas como eu poderia acreditar nele antes de ver minha filha?

Eles a trouxeram para mim. Ela estava bem dessa vez. Depois disso, eles mudaram o tom comigo, me dando uma falsa sensação de segurança. Passei 13 dias seguidos na minha cela, espreitando os pés das minhas filhas por baixo da porta quando elas iam ao banheiro em frente à minha cela. Eu contava os minutos durante as sete horas que separavam esses momentos para ver se elas ainda estavam vivas.

Depois, nos colocaram, minhas filhas e eu, em uma cela durante seis meses. Consegui abraçá-las, tentando fazer parecer que estava tudo bem, mesmo quando eu não tinha nada a dizer ou quando nada estava bem. Tremia na escuridão da cela, naquela noite interminável, mas tentava ao máximo não deixar que as minhas filhas percebessem. Dormia mais perto da porta para que elas se sentissem um pouco mais seguras. Daria qualquer coisa, até a minha vida, para mantê-las seguras.

Nos ofereciam comida que não tinha nada a ver com comida: uma sopa mal cozida, algumas batatas que começavam a apodrecer. Via as minhas filhas definharem diante dos meus olhos. Sou mãe delas, mas não podia cuidar delas. Não podia alimentá-las com o que lhes daria energia para enfrentar mais um dia de dor.

Mas eles as tiraram de mim novamente. Eles me convenceram de que eu não era adequada para criá-las e então as transferiram para um orfanato. Eu esperava que elas estivessem em um lugar melhor, mas meu coração estava partido. Quem vai amá-las mais do que eu? Mas a verdade é que fomos transferidas para prisões diferentes. Quando uma das presas me disse que era possível se comunicar entre as duas prisões, exigi falar com as minhas filhas. Durante três meses, nos comunicamos durante alguns minutos, pelos quais eu ansiava dia e noite.

Disseram que as minhas filhas seriam mantidas presas por não denunciarem o pai. Elas foram colocadas em um centro de detenção juvenil. Fui privada de vê-las durante um ano e oito meses. No fim, minhas filhas foram libertadas.

Durante os anos de detenção, me prometeram várias vezes que eu seria libertada, mas me levavam de volta [para a cela] toda vez. Eu recomeçava todo o processo doloroso, entre investigações sangrentas, espancamentos severos e tortura psicológica. Via o sol por breves instantes. Nunca vi o céu, exceto através do arame farpado.

Penso em vingança com frequência. Reagir de forma anormal em ações normais se tornou meu padrão. Não quero que sentimentos de ódio e amargura me dominem. Isso me machuca, não aos outros. Gostaria de me livrar de tudo o que essa experiência deixou em mim.”

 

O caminho da reconstrução

Em resposta às enormes necessidades médicas e de saúde mental, MSF lançou um programa para sobreviventes de violência na Síria. Suha é uma das 113 pacientes. Ela está em acompanhamento com nossa equipe e, embora tenha um longo caminho pela frente, está começando sua jornada de cura pouco a pouco. Nossa equipe acredita que sua força de vontade de viver, embora abalada durante a detenção, nunca desapareceu, e que ela está recomeçando sua vida por suas filhas.

Suha* abriu um pequeno negócio de venda de vestidos no seu bairro. Ela está ajudando suas filhas a seguir em frente, enquanto tenta recomeçar a sua própria vida, desta vez bem distante da escuridão.

*O nome foi alterado para proteger sua identidade.

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