Sea-Watch 4 tem um porto seguro 11 dias após o primeiro resgate

Embarcação segue para a cidade italiana de Palermo, com 353 resgatados a bordo

Sea-Watch 4 tem um porto seguro 11 dias após o primeiro resgate

MSF, junto com a Sea-Watch, está de volta ao mar Mediterrâneo central desde 15 de agosto, a bordo do navio Sea-Watch 4. Finalmente, em 1º de setembro, 11 dias após o primeiro resgate, a embarcação foi alocada em um porto seguro no país mais próximo, a Itália. O navio segue agora com destino a Palermo para desembarcar 353 pessoas.

Na entrevista abaixo, a consultora de assuntos humanitários de MSF Hassiba Hadj-Sahraoui apresenta uma visão geral sobre a situação:
 

O que está acontecendo no Mediterrâneo central agora?

A situação no mar é terrível. Nos últimos 11 dias, testemunhamos como os Estados europeus estão condenando pessoas ao afogamento e bloqueando ações para salvá-las. Quase 400 pessoas morreram no Mar Mediterrâneo central em 2020. É difícil entender como isso pode acontecer. Mas é verdade.
 

Há apenas duas semanas, 45 pessoas perderam a vida em um naufrágio. Há poucos dias, as pessoas se amontoaram em um bote de borracha e viram quatro de seu grupo se afogarem. Quase 400 pessoas ficaram presas esperando um porto seguro, algumas por dias e outras por semanas. Vinte e sete delas, resgatadas por ordem de Malta, por um navio comercial, o petroleiro Etienne, foram abandonados a definhar por quase quatro semanas.
 

Este é o resultado de políticas deliberadas para não salvar vidas. Nos últimos meses, apesar de receberem pedidos de socorro de barcos de borracha em suas próprias regiões de busca e salvamento, Malta e a Itália têm ignorado pedidos e atrasado resgates em áreas do mar Mediterrâneo que estão sob sua responsabilidade. Mas eles não são os únicos Estados da União Europeia (EU) que estão dando as costas à situação.

 

O fracasso da atuação dos Estados obrigou as organizações não governamentais (ONG) a tentar preencher a lacuna, estabelecendo operações de busca e resgate. Mas, graças ao confisco de navios e bloqueios administrativos pouco claros, quase ninguém consegue estar no mar agora. Atualmente, apenas Sea-Watch 4 e o Louise Michel, financiado pelo artista Banksy, são os únicos navios de busca e resgate ativos no Mediterrâneo central.

 

Qual foi a experiência do Sea-Watch 4?

MSF, junto com Sea-Watch, está de volta ao mar, a bordo do Sea-Watch 4 há 11 dias. O que vimos não é nada menos que uma desgraça. Na noite de segunda-feira, 31 de agosto, finalmente fomos notificados de que poderemos desembarcar 353 pessoas resgatadas em Palermo, Itália – o local de segurança mais próximo. Desde o retorno ao mar, temos sido constantemente confrontados por Estados, principalmente Malta e Itália, ignorando pedidos de socorro no mar e passando a responsabilidade para outros, como navios comerciais ou navios de busca e resgate de ONGs.
 

Realizamos nosso primeiro resgate poucas horas depois de chegar em águas internacionais, na costa da Líbia em 22 de agosto. Isso foi seguido por mais dois resgates nos dias seguintes. Apesar dos repetidos pedidos, um local seguro não nos foi oferecido.
 

Inacreditavelmente, os Estados agora estão instruindo embarcações comerciais e de ONGs para ajudar nos resgates, e então se recusando a fornecer um porto seguro. No último fim de semana (29-30 de agosto), Malta instruiu o Sea-Watch 4 a receber as pessoas resgatadas do Louise Michel. As autoridades marítimas maltesas passaram então a ignorar os nossos apelos.
 

Quantas pessoas resgatadas estão a bordo do Sea-Watch 4 no momento?

O Sea-Watch 4 tem 353 pessoas a bordo, 202 de três operações de resgate que realizamos entre 22 e 24 de agosto. E as 152 pessoas adicionais que transferimos do Louise Michel. Estamos particularmente preocupados com as crianças. Temos cerca de cem menores desacompanhados a bordo. Eles são extremamente vulneráveis ​​e precisam de proteção.

Nosso navio tem 60 metros de comprimento. Algumas pessoas foram resgatadas há 11 dias. Com tantas pessoas em um espaço tão confinado, as tensões aumentam. Especialmente quando tentamos implementar protocolos contra a COVID-19 a bordo.
 

Muitas pessoas estão altamente traumatizadas. Pessoas transferidas do Louise Michel viram quatro pessoas se afogando. Apenas um corpo foi recuperado. Os outros, como tantos milhares antes, se perderam nas ondas. E, além disso, está a angústia e a ansiedade de não saber o que vai acontecer a seguir. Esses Estados estão brincando com a vida das pessoas. É crueldade ao extremo.
 

O que testemunha a equipe médica de MSF a bordo?

Juntamente com enjoo, desidratação e sarna, vemos queimaduras químicas. Resultado de uma mistura tóxica de gasolina e água do mar. Uma pessoa resgatada, um adolescente, ficou tão gravemente queimado que tivemos que providenciar uma evacuação médica. Nossas equipes também estão tratando membros quebrados e lesões por trauma, consistentes com relatos de abuso, tortura e maus-tratos na Líbia.
 

Implementamos protocolos contra a COVID-19, por isso prestamos atenção especial a qualquer pessoa com possíveis sintomas, como tosse ou febre alta. E garantindo que eles fiquem isolados. Tanto a tripulação quanto as pessoas resgatadas estão vigilantemente lavando as mãos e usando máscaras.
 

O que aconteceu com o navio Louise Michel?

Na sexta-feira, 28 de agosto, o Louise Michel avistou um bote de borracha lotado, que acomodava 130 pessoas. As pessoas no barco sem condições de navegar disseram ao Louise Michel que quatro de seus membros se afogaram, e a tripulação do Louise Michel conseguiu recuperar apenas um corpo. O Louise Michel com apenas 30 metros de comprimento já estava lotado, com 89 resgatados anteriormente. Mais de seis horas depois que o bote foi localizado e nenhum Estado respondeu, o Louise Michel não teve escolha a não ser começar a trazer pessoas a bordo, fornecendo um bote salva-vidas quando o barco ficava muito cheio, até mesmo para se mover. No sábado, 29 de agosto, o Louise Michel emitiu outro apelo de assistência ao qual o Sea-Watch 4 respondeu.
 

Eventualmente, as autoridades italianas ajudaram levando 49 das pessoas mais vulneráveis: crianças e algumas das mulheres, incluindo as que estavam grávidas e pessoas em emergências médicas para o porto de Lampedusa. As autoridades maltesas instruíram o Sea-Watch 4 a levar as 152 pessoas restantes do Louise Michel a bordo. Malta, porém, não designou um porto seguro para o desembarque do grupo. E ignorou os pedidos repetidos.
 

Como o Sea-Watch 4 pediu um porto seguro?

Um resgate só pode ser considerado completo quando as pessoas resgatadas são desembarcadas em local seguro. No domingo, 23 de agosto, escrevemos às autoridades maltesas e italianas para solicitar um. Copiamos a Alemanha, o Estado de bandeira do Sea-Watch 4. Repetimos continuamente nosso pedido, inclusive depois que fomos solicitados a receber pessoas resgatadas do Louise Michel pelas autoridades maltesas.
 

As autoridades maltesas sempre nos ignoraram ou responderam negativamente. A Itália demorou a responder, mas na sexta-feira, 28 de agosto, as autoridades italianas nos pediram mais informações – por exemplo, se havia grupos familiares, menores não acompanhados e casos médicos urgentes. Isso nos deu a sensação de que as discussões estavam indo na direção certa, mas não tínhamos certeza de quando e como poderíamos desembarcar as pessoas resgatadas. Todos nós tínhamos a situação do Etienne, no mar por semanas, em primeiro lugar em nossas mentes.
 

Por que sempre Itália e Malta têm de fazer mais?

Todos os Estados da UE compartilham responsabilidades. Quem olha para o outro lado também não ajuda Itália e Malta, que estão na linha da frente. A Itália, por exemplo, foi deixada praticamente sozinha para receber centenas de migrantes, refugiados e solicitantes de asilo que chegaram sozinhos ao porto de Lampedusa nos últimos meses. Quando se trata de porto de segurança, deve ser o lugar seguro mais próximo onde as autoridades avaliam as necessidades de proteção das pessoas. Por isso, apesar da generosa oferta do porto de Marselha, não pudemos viajar muitos dias para desembarcar pessoas. O que a França e outros Estados europeus podem fazer é estender a mão à Itália para oferecer a realocação de algumas das pessoas resgatadas.

 

O que você acha que vai acontecer em relação à COVID-19?

Como organização médica e humanitária, MSF está particularmente ciente dos riscos representados pela COVID-19. MSF respondeu à pandemia em mais de 70 países, incluindo a Itália. Apoiamos sinceramente a necessidade de tomar todas as precauções necessárias. É por isso que implementamos a bordo alguns protocolos muito rígidos. E acreditamos que se formos solicitados a colocar em quarentena as pessoas que trazemos para um porto seguro, desde que as condições básicas sejam atendidas, essa é uma medida aceitável.
 

O que não aceitaremos é se o navio for apreendido sem um bom motivo, ou com desculpas forjadas, como vimos acontecer no passado recente. Podemos ser informados, por exemplo, que temos muitas pessoas a bordo, apesar de termos seguido as ordens das autoridades marítimas.
 

Por que MSF insiste em trazer pessoas para a Europa? Por que elas não podem ser levadas de volta para a Líbia?

A resposta curta? Seria ilegal levar pessoas de volta à Líbia. Porque a Líbia não é absolutamente um lugar seguro. Este fato foi reiterado pelo Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR) e pela Organização Internacional para as Migrações (OIM).

MSF administra projetos em Trípoli, Misrata, Zintan e Beni Walid. Nesses lugares, vemos os impactos diretos dos abusos que migrantes, refugiados e solicitantes de asilo sofrem não apenas na detenção, mas também nas mãos dos traficantes. Isso inclui tortura e outros maus-tratos, trabalho forçado e extorsão.
 

Um grande naufrágio recente na costa da Líbia tirou pelo menos 45 vidas. Nossas equipes encontraram alguns dos sobreviventes, depois que foram levados de volta para a Líbia. Suas histórias eram angustiantes.
 

A resposta longa? A Líbia não é um lugar seguro e devolver pessoas à Líbia é uma violação do direito internacional. Isso não significa que não nos envolvamos com as autoridades líbias, sim. Mas, do jeito que as coisas estão, a única opção para um porto seguro são os Estados costeiros vizinhos do outro lado do mar. Não há ideologia por trás disso, é apenas geografia.

 

Tememos que a atenção que tem sido dada ao Mediterrâneo e aos resgates pelas ONGs possa fornecer uma cortina de fumaça, uma tática de diversão para chamar a atenção para as operações de busca e resgate de civis. Para que as pessoas não façam perguntas sobre as cerca de 8 mil pessoas que foram interceptadas e ‘empurradas’ para a Líbia, pela Guarda Costeira da Líbia desde o início do ano.
 

Quem deve assumir a responsabilidade?

 

O que é impressionante é como mais uma vez testemunhamos um desastre causado pelo homem, induzido por políticas. Os Estados europeus devem assumir a responsabilidade. Itália e Malta não cumprem as obrigações legais de resgatar pessoas ou de alocar um porto de segurança e assistência adequada. Mas, sejamos também muito claros, a responsabilidade por isso não pode recair apenas sobre esses dois países. Cada Estado europeu tem um papel a desempenhar: oferecer soluções concretas para compartilhar a responsabilidade e estabelecer um mecanismo de busca e salvamento adequado no mar. Além dos resgates realizados pelo Sea-Watch 4 e pelo Louise Michel (assim como pelo Etienne, é claro), várias pessoas estão conseguindo chegar sozinhas a Lampedusa e a outros locais de desembarque no sul da Itália.

 

Os Estados europeus estão brincando com a vida de migrantes, refugiados e solicitantes de asilo. O imperativo moral e legal para salvar vidas deve prevalecer. Os Estados europeus devem implantar capacidade adequada de busca e salvamento no mar e responder aos pedidos de socorro. Esses impasses cruéis no mar devem acabar. Sem ‘se’, sem ‘mas’. Sem passar a bola para outro Estado. Isso é inteiramente possível com a capacidade de busca e resgate liderada pelo Estado e cooperação para um mecanismo previsível e sustentável para desembarcar as pessoas resgatadas no local de segurança mais próximo.

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