Refugiados sírios no Iraque: “Os sorrisos dos pacientes me aquecem o coração”

Psicóloga de MSF conta experiência com pacientes no Curdistão

Em março, a psicóloga clínica Charlotte Yence retornou de um trabalho de cinco meses no Curdistão iraquiano, onde MSF mantém atividades em um campo de refugiados sírios desde 2013. Ela iniciou programas de saúde mental nos campos de Kawargosk, Qushtapa e Darashakran e, neste relato, conta um pouco do que encontrou por lá.

“O inverno é frio no Curdistão iraquiano. As pessoas me dão calor humano, que compensa o frio do inverno e o vento gelado que sopra por todo o acampamento. A cada manhã, eu encontro coragem para iniciar meu dia de trabalho. Todo dia é um desafio. Tenho calafrios que nunca mais vão me deixar. Nem me atrevo a imaginar as dificuldades que eles têm de enfrentar nas tendas, além do exílio duplo a que tiveram de se submeter. Primeiro, saíram de Damasco, depois deixaram a cidade de Aleppo, devastada pela guerra, para encontrar refúgio no Curdistão sírio, de onde são originalmente. E então, quando os bombardeios chegaram ali, fugiram novamente para o Iraque. Eles perderam tudo duas vezes, viram suas famílias despedaçadas, perderam pessoas amadas e agora estão tendo de viver em condições precárias diante de um futuro incerto. É difícil, agonizante; eles não se sentem bem-vindos por seus primos curdos, não falam a mesma língua, não tem trabalho nem renda. Sua aflição é palpável, seus desejos por uma vida melhor são legítimos, mas eles estão focados em sobreviver e em se adaptar às novas condições de vida. Acampar sob chuva, na neve e na lama não é fácil e quando as palavras são difíceis demais, seus corpos expressam seu profundo mal-estar.

Os sorrisos dos pacientes quando me veem aquece meu coração, sua calma e rostos radiantes ao final de uma sessão – que são sempre intensas e libertadoras – são o melhor encorajamento para seguir em frente. Os homens apertam minha mão timidamente, depois a colocam em seu coração ou na testa, ou nos dois rapidamente. Diariamente, sou abençoada até a sétima geração com excitantes “saatchava saatroch”, que significam “sobre meus olhos atentos”. As mulheres me apertam como se eu fosse um bom pão, um beijo na bochecha esquerda, três dados rapidamente na direita, um braço em volta do meu pescoço e outro esmagando minha cabeça. Sua dureza é carinhosa, seu carinho é duro. Eu as abraço quando choram; eu falo com eles em meu francês-curdo-árabe – ‘halas, ça va aller, bash?’ – e eles me entendem, porque a linguagem das emoções é mais forte do que as palavras. Nós também rimos bastante. A cumplicidade está lá, a confiança também, para abordar assuntos sérios com certa trivialidade.

‘Mamãe correria’. Eu a apelidei assim porque ela corre para me ver toda semana, tamanha é a pressa em me ver, e ela dá gargalhadas quando eu uso o apelido. Ela tem 47 anos, mas parece ter 60, exceto quando sorri e fica parecendo uma jovem estudante. Ela fala avidamente, com urgência e detalhe, sobre suas 11 crianças, dos quais um de 27 anos está com séria deficiência e não é, nem nunca será, independente, seus dois netos de quem ela cuida, seu analfabetismo que a impede de saber quem deve abordar para buscar ajuda com a alimentação. Seu marido ficou na Síria e ela fala mal dele porque ele sempre se choca e fica assustado longe dela e de sua vida cotidiana. Ao mesmo tempo, ela não quer lhe falar tudo, porque isso seria mais um fardo do que um auxílio.

Ela parte para se juntar a sua família depois de nosso encontro sem correr, porém mais leve, aliviada de suas grandes dores que a fizeram velha antes do tempo. Uma forte relação desenvolveu-se entre nós, e é de partir o coração dizer a ela, com o fim de minha permanência no projeto, que eu estou indo embora. Para ela é mais uma perda, que a faz reviver todas as outras que já sofreu. Grandes e silenciosas lágrimas escorrem por suas bochechas enrugadas quando ela se volta para o intérprete e pergunta “O que será de mim? A única benção que eu tive desde que vim ao Iraque foi conhecê-la!”   

Ela se convenceu, ao encontrar meu substituto, que seu tratamento terá continuidade. E, contra todas as probabilidades, acredita que pode interromper os ciclos de desapontamentos que marcaram sua vida difícil.

Selma* tem 10 anos de idade. Ela sobreviveu a um bombardeio em seu vilarejo, mas seu primo, cuja cabeça ela viu rolar aos seus pés, não. Desde então, ela perdeu um pouco de cabelo e está com uma parte da cabeça careca; cabelo como o que ela puxou do escalpo de seu primo, recuperando o que sobrou dele. No início, ela fez desenhos magníficos e detalhados usando apenas a tinta preta entre todas as cores disponíveis. Aos poucos, ela introduziu outras cores e sua criação final era um autêntico arco-íris. Ela desenhou Ali, o herói guaxinim da pasta de trabalho para crianças traumatizadas que, calmamente, volta para brincar com os amigos.

Desde então, o cabelo da Selma começou a crescer novamente. Ela explicou que não precisava mais me ver de novo, mesmo que seus olhos muito negros estivessem cheios de lágrimas enquanto ela falava. Eu respondi dizendo que, mesmo que não nos víssemos mais, eu sempre a levaria em meu coração, que nesse momento estava muito apertado, preciso admitir. Seu pai, que estava com ela na reunião, explicou com doçura como estava orgulhoso da filha e de seu progresso. Eles se mudaram para Erbil e não vivem mais em uma tenda, mas em uma casa. Logo, Selma poderá voltar para a escola, seu maior desejo.

Mustafá tem 27 anos e está paralisado da cintura para baixo há dois anos, desde que passou semanas sob tortura na prisão. Ele reconta seus sonhos simbólicos de liberdade, seu primeiro amor perdido, sua perseverança ao fazer exercícios diariamente nos becos do acampamento cheios de lama, seu orgulho por ser procurado para cantar em casamentos. Ele também me fala sobre seus pensamentos suicidas. ‘Qual é o ponto de se viver assim? Nada será o mesmo novamente’. Seu belo rosto marcado por uma infinita tristeza, ele fala tanto de suas pernas quanto de sua terra natal, mas seu deslumbrante sorriso retorna para iluminar seus olhos cor de mel quando digo ‘te vejo na próxima terça-feira’.

Aos poucos, durante os nossas encontros, ele redescobre a esperança no futuro. Um dia, ele chega feliz para anunciar que se apaixonou de novo e que quer casar com uma jovem mulher que conheceu no acampamento. Ele quase esquece sua raiva por nunca mais ser capaz de andar outra vez.

Sakina está visivelmente com demência. Eu ganho sua confiança perguntando se ela vê ou ouve coisas que outras pessoas não conseguem (em outras palavras, se ela tem alucinações). Na mosca! Nenhum de seus familiares ou amigos quer acreditar que ela vê pessoas flutuando no céu. Minha pergunta é inesperada. Seus pais a acompanham, eles estão preocupados com o futuro dela quando não estiverem mais aqui. Ela agora está muito velha para encontrar um marido (39 anos!) e monopoliza, até mesmo tiraniza, a família inteira. É verdade que cada sessão é uma batalha, um combate verbal entre eles. Mas mesmo que seja assim que a família funcione normalmente, é ainda mais difícil aqui no Curdistão. Sakina não tem mais sua rotina, não toma medicamentos regularmente e está muito infeliz. Finalmente, eles decidem mandá-la de volta para a Síria. Em uma situação louca, é preciso ser duas vezes mais louco.

Jewan, de 22 anos, não consegue dormir. Continuamente, ele revive a tortura que sofreu na prisão. Ele já não se sente parte do mundo dos homens, uma vez que vive muito próximo da morte. Ele é um estranho para si mesmo e para os outros. Fora do espaço de nossas sessões terapêuticas, ele é incapaz de compartilhar com seus amigos mais próximos e familiares as experiências que vivenciou, o que sofreu, e sua forma de combater a enorme angústia que sente é dando início a brigas físicas sem qualquer motivo.

Sua perspectiva para o futuro é retornar à Síria, o que ele admite livremente ser um tipo de suicídio. Construí com ele um relacionamento condicionado, suave e maternal, que o permite abandonar a si mesmo para dormir um pouco por noite e recomeçar a busca por sua irmã e seus amados sobrinhos, que estão deslocados, como ele, ao invés de responder ao chamado da morte. É um relacionamento frágil, no qual não pode haver mudança ou acontecer algo inesperado, do qual ele é dependente, como um bebê de sua mãe.

Todos eles têm entre nove e 12 anos e vêm felizes às reuniões do grupo de suporte que organizo semanalmente após o período escolar. É a professora que me apresenta a eles, e que identificou, de forma justificável, que sofriam psicologicamente. Testemunhas da guerra na Síria, essas crianças perderam familiares, fugiram às pressas de suas casas, têm pesadelos e buscam as ferramentas que têm para combater a tristeza e a incompreensão da situação. Fico sempre impressionada com a precisão com que essas crianças conseguem desenhar uma Kalashnikov, bombardeios, tanques e corpos deitados sobre seu próprio sangue.

No decorrer de nossas sessões, elas experimentam compartilhar suas experiências angustiantes, encontrar aliados, amigos e aprender a expressar seus sentimentos. Por meio dos exercícios de desenho que proponho, descobrem que é muito mais difícil relacionar suas experiências de paz do que as de guerra! E entendem, por meio de muitos desenhos feitos à mão, que viveram o mesmo trauma, que não estão ali por nada, e que sua vingança é estarem responsáveis por sua própria reconstrução e que, apesar das diferenças individuais, eles podem ajudar uns aos outros.

Eu acredito nas crianças sírias de hoje, os adultos de amanhã. Mas as tarefas que estão por vir serão longas e difíceis para elas.

*Os nomes foram alterados

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