RDC: primeiro veio a corrida do ouro, depois o cólera

Médicos Sem Fronteiras lançou resposta de emergência para conter surto de cólera na cidade de Lomera, para onde milhares de pessoas foram atraídas em busca de ouro

Equipe de MSF desce em Lomera, Kivu do Sul, para participar de atividades de conscientização sobre o cólera na comunidade. @ Sam Bradpiece/MSF

No início de maio, Médicos Sem Fronteiras (MSF) lançou uma resposta de emergência a um surto de cólera na cidade de Lomera, na República Democrática do Congo (RDC), onde a corrida do ouro e a falta de saneamento alimentaram a rápida disseminação da doença. Mais de 8 mil pessoas foram vacinadas e mais de 600 pacientes receberam tratamento, enquanto as equipes trabalhavam sem parar para oferecer cuidados e melhorar o acesso à água potável.

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Até pouco tempo, Lomera era um vilarejo tranquilo à beira do lago, pouco conhecido para a maioria dos moradores da província de Kivu do Sul, onde está localizado. Isso mudou da noite para o dia, em dezembro passado, quando foi descoberto ouro em suas colinas.

A corrida pela fortuna – intensificada pela insegurança econômica causada pelos confrontos entre o grupo armado M23/AFC, o exército congolês (FARDC) e seus aliados, combatentes do Wazalendo – transformou Lomera em um ímã para milhares de pessoas em busca de trabalho e segurança.

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Localização do assentamento na encosta, onde os resíduos não tratados vão para o lago, aumentando a contaminação. @ Sam Bradpiece/MSF

Em menos de um ano, a população explodiu de 1.500 para mais de 12 mil pessoas. O vilarejo agora é um caos de minas e abrigos improvisados.

“Vivemos em condições difíceis, sem muito espaço, mas aguentamos porque precisamos ganhar a vida”, disse Chiza Blonza, 45 anos, que deixou sua terra em Walungu (a cerca de 90 quilômetros de distância) para trabalhar nas minas.

Assentamento de abrigos improvisados, abrigando agora uma população transitória que ultrapassa 12 mil pessoas. @ Sam Bradpiece/MSF

Todos os dias, mais pessoas chegam, amontoando-se em abrigos já lotados – às vezes, 20 pessoas em um quarto. Era apenas uma questão de tempo até que o desastre acontecesse.

Estamos vendo superlotação severa, quase nenhuma água limpa.”
– Mathilde Cilley, referente médica do projeto de MSF

“Tudo o que poderia alimentar um surto de cólera está aqui”, explica Mathilde Cilley, referente médica do projeto de MSF. “Estamos vendo superlotação severa, quase nenhuma água limpa, defecação a céu aberto nas colinas e uma total falta de gerenciamento de resíduos.”

Crianças em Lomera buscam água no lago, expondo-se ao cólera. @ Sam Bradpiece/MSF

O cólera é uma doença endêmica nessa parte da RDC, e o lago está contaminado pela bactéria. Ainda assim, uma epidemia nessa escala é incomum. Os primeiros 13 casos em Lomera foram registrados em 20 de abril. Em duas semanas, esse número aumentou em mais de 700%, chegando a 109 casos – um número provavelmente subestimado. Hoje, em Lomera estão 95% dos casos de cólera registrados na região de Katana, uma área que abriga mais de 275 mil pessoas.

MSF foi a principal organização internacional a responder ao surto, lançando uma rápida ação de emergência, em 9 de maio. As equipes trabalharam 24 horas por dia para conter a epidemia. Em apenas quatro dias, MSF vacinou mais de 8 mil pessoas – ainda que os suprimentos fossem limitados e, por isso, apenas doses únicas foram administradas, em vez das duas recomendadas.

Ezekiel, enfermeiro de MSF, faz a ronda em um centro de tratamento de cólera criado para responder ao surto da doença em Lomera. @ Sam Bradpiece/MSF

Mais de 600 pessoas diagnosticadas com cólera foram tratadas em uma unidade temporária de tratamento com 20 leitos montada por MSF, e muitas delas chegaram em estado crítico.

“A grande maioria de nossos pacientes trabalha nas minas, onde usam a água contaminada do lago para separar o ouro da terra, expondo-se às bactérias”, explicou Théophile Amani, médico de MSF em Lomera. “O trabalho manual pesado e os altos níveis de consumo de álcool significam que muitos já estão desidratados antes mesmo de serem infectados.”

O tratamento de cólera se concentra principalmente na reidratação dos pacientes. @ Sam Bradpiece/MSF

Após o tratamento, os pacientes recebem kits de higiene – baldes, pastilhas para purificação de água e sabão – e orientação da equipe de MSF sobre como evitar futuras infecções.

Um profissional de MSF mostra tabletes de purificação de água. @ Sam Bradpiece/MSF

Bonheur Maganda, um jovem de 25 anos originário de Kabamba, está entre eles. Ele foi trabalhar nas minas para sustentar seus filhos e disse que muitos de seus colegas também ficaram doentes.

“Sem MSF, muitos deles teriam morrido”, disse ele. “O agente de promoção de saúde explicou a importância de lavar minhas mãos com água limpa e de ter cuidado com os alimentos. Compartilharei esse conselho com outras pessoas.”

Bonheur Maganda, paciente que recebeu alta após se recuperar do cólera, foi infectado enquanto trabalhava nas minas. @ Sam Bradpiece/MSF

MSF também instalou uma estrutura de tratamento de água à beira do lago e um ponto de distribuição, fornecendo cerca de 60 mil litros de água limpa diariamente. Cem latrinas e vinte e cinco pontos de lavagem de mãos foram instalados em todo o assentamento, inclusive em restaurantes e locais públicos onde as pessoas costumam se reunir. O rastreamento de contatos e o tratamento preventivo para as pessoas expostas ao cólera foram cruciais para conter a disseminação.

A resposta emergencial de MSF será repassada em breve a outros parceiros, mas há uma necessidade urgente de soluções de longo prazo para garantir o acesso contínuo à água potável.

MSF também instalou uma estação de tratamento de água e um ponto de distribuição, fornecendo cerca de 60 mil litros de água limpa por dia. @ Sam Bradpiece/MSF

“Sem um investimento significativo em infraestrutura de água, saneamento e higiene básica, é provável que surtos como esse persistam regularmente”, alerta Muriel Boursier, coordenadora-geral de MSF em Bukavu. “No momento, o poço mais próximo fica a três quilômetros de distância. Os parceiros internacionais e as autoridades locais devem se mobilizar e implementar soluções sustentáveis.”

Dado o fluxo constante de pessoas que entram e saem da cidade, também serão necessários mais suprimentos de vacinas para proteger a população.

O que antes era um vilarejo à beira do lago com 1.500 habitantes se transformou rapidamente em um amplo assentamento que ultrapassa 12 mil pessoas. @ Sam Bradpiece/MSF

“A província de Kivu do Sul – e o leste da RDC como um todo – está enfrentando grandes obstáculos logísticos para conseguir suprimentos médicos essenciais, incluindo vacinas, medicamentos e equipamentos, onde eles são mais necessários”, alerta Muriel Boursier.

“Embora a insegurança seja um fator, o fechamento dos aeroportos em Bukavu e Goma teve um impacto ainda maior, restringindo severamente nossa capacidade de fornecer ajuda vital. Os cortes internacionais no financiamento humanitário também limitaram a disponibilidade de suprimentos médicos. Pedimos às autoridades governamentais e aos parceiros internacionais que façam todo o possível para ajudar a restaurar o acesso e apoiar a resposta sanitária à ampla gama de emergências de saúde que afetam a região.”

A resposta aos surtos de cólera continua sendo uma prioridade central para MSF na RDC. Somente em 2024, as equipes de MSF trataram mais de 15 mil casos de cólera em todo o país, trabalhando ao lado das autoridades de saúde locais e das comunidades para salvar vidas e impedir a propagação da doença.

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