RDC: “A COVID-19 não deve comprometer a resposta a outras doenças mortais, como o sarampo”

Ofuscada pelos surtos de Ebola no ano passado e pela COVID-19 hoje, a epidemia de sarampo na República Democrática do Congo continua tirando a vida de crianças todos os dias

RDC: "A COVID-19 não deve comprometer a resposta a outras doenças mortais, como o sarampo"

“Vai ser animado!”, avisa Héritier antes de partir com sua moto na estrada de terra que liga Lisala a Boso Manzi, na província de Mongala, no norte da República Democrática do Congo (RDC). “Não chove há muito tempo e, com toda essa terra, será uma aventura chegar lá”.
                                                                 
Assim como o resto do comboio de motociclistas de Médicos Sem Fronteiras (MSF) atrás dele, Héritier carrega na parte traseira de sua moto uma grande caixa cheia de placas de gelo e um dos tesouros mais preciosos da região: as vacinas contra o sarampo.

A província de Mongala foi fortemente atingida pela epidemia de sarampo que matou mais de 6.600 crianças na RDC desde janeiro de 2019. Apesar das campanhas de vacinação realizadas na província pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pelas autoridades congolesas em dezembro, centenas de casos foram notificados na zona de saúde de Boso Manzi no início de 2020. Em resposta, MSF enviou uma equipe de emergência ao local para avaliar a situação, lançar uma nova campanha de vacinação e apoiar o atendimento aos pacientes.

Cada atraso prolonga a epidemia

Ofuscada pela epidemia de Ebola, a resposta ao surto de sarampo na RDC sofreu com a falta de atenção desde o início. Levou meses até que a epidemia fosse declarada, em junho de 2019, e as campanhas de vacinação das autoridades sofreram atrasos significativos, com problemas de coordenação e a falta de parceiros, que estavam muito focados na gestão da crise do Ebola. Apesar de planejadas dois anos antes, as atividades de vacinação complementares só começaram em outubro de 2019.
 
Essa situação contribuiu para o número elevado de casos no país. A epidemia de sarampo é a mais mortal da RDC. E a maior do mundo.

“Hoje, o número de casos caiu no total, mas a epidemia está longe do fim e algumas áreas estão registrando aumentos”, explica Emmanuel Lampaert, coordenador de operações de MSF na RDC. “É necessária uma ação urgente em cerca de 100 zonas de saúde. Desde janeiro, mais de 50 mil casos de sarampo foram registrados oficialmente e mais de 600 mortes. Muitas das áreas com aumento de notificações e mortes nem sequer estão incluídas no último plano nacional de resposta.”

Nesse contexto já difícil, novos obstáculos à vacinação surgiram recentemente após a pandemia da COVID-19.

“É crucial implementar medidas de prevenção contra o novo coronavírus para proteger populações e profissionais de saúde, especialmente em um país onde as capacidades de saúde são muito limitadas”, continua Lampaert. “Infelizmente, essas medidas estão tendo um impacto sobre a resposta ao sarampo, incluindo em termos de transporte de vacinas, equipes específicas e campanhas de vacinação.”

“Cada novo atraso aumenta o risco de a epidemia de sarampo se espalhar e matar mais crianças. Durante a epidemia de Ebola na África Ocidental, a interrupção das campanhas de vacinação levou ao ressurgimento do sarampo.”

“As necessidades são enormes”

Ao longo do caminho para Boso Manzi, a população saúda a passagem do comboio de motos, que enfrenta uma difícil jornada de seis horas. A estrada é o único caminho que liga a zona de saúde à capital da província. E, como na maioria das localidades remotas e de difícil acesso, “assassinos silenciosos” – sarampo, malária, diarreia, infecções respiratórias – são uma realidade diária aqui.

“As necessidades são imensas. O fornecimento de medicamentos aos nossos centros de saúde continua difícil”, explica Gédéon Mushadi, coordenador médico. “O pouco que há disponível em cada estrutura não é suficiente para atender às necessidades da população”.

Alphonsine Ekima, 43 anos de idade, vivia essa situação na pele. Há um mês e meio, ela perdeu a filha Marie, de três anos de idade. A menina foi enterrada no mesmo dia que seu primo, que também morreu da doença. “Marie é o quarto filho que perdi”, diz ela.

Como Alphonsine, Mada Mado também perdeu a filha há algumas semanas. “Meus seis outros filhos tiveram sarampo, mesmo tendo sido vacinados em dezembro”, diz ela.

Essa situação não surpreende Philippe Mpabenda, médico responsável pela resposta de emergência de MSF em fevereiro. “A eficácia das vacinas depende muito da capacidade de mantê-las em temperaturas entre 2 e 8°C”, explica ele. “No entanto, em áreas remotas como essa, as estruturas locais de saúde não têm cadeia de frio e carecem de meios de transporte.”

Sarampo e outras complicações

No Hospital Geral Boso Manzi, onde MSF apoia o tratamento de pacientes com sarampo, o impacto da epidemia é impressionante. Na ala reservada para eles, mães e filhos doentes lotam os leitos.

No meio da sala, Dobo Mambanza, 3 anos de idade, geme nos braços de sua mãe. A menina se esforça para abrir a boca, o rosto marcado pela doença. Sua mãe viajou 65 quilômetros para vir aqui, depois que os tratamentos tradicionais falharam em curar os primeiros sintomas.

“O sarampo afeta o sistema imunológico e torna as crianças vulneráveis a várias infecções”, diz a médica Patrizia Giangrande, enquanto examina a criança. “Pode gerar complicações respiratórias e neurológicas e provocar desnutrição. Devido à infecção ocular e danos à córnea, Dobo infelizmente não tem mais visão”.

Ao lado está Mbisa Eme Kosenge, 3 anos de idade, que também luta contra a doença. Ela contraiu tuberculose e está mostrando sinais de desnutrição. Mas, após 10 dias de tratamento, ela poderá voltar para a sua família e para o seu vilarejo, a 55 quilômetros daqui.

“Estamos buscando quais são os focos da epidemia”

Durante as seis semanas da atuação de MSF em Boso Manzi, mais de mil pacientes como Dobo e Mbisa foram tratados aqui. Fora do hospital, as equipes vacinaram mais de 44 mil crianças nas várias zonas de saúde da região.

“Estamos buscando quais são os focos da epidemia”, explica Philippe Mpabenda. “No mês passado, nossa equipe estava na província de Equateur, e estamos prestes a partir para outro lugar. Essa ainda é a realidade da epidemia nesta fase.”

De Haut-Uélé a Congo Central, do norte de Ubangi ao Kivu do Sul, as equipes de MSF já estiveram em dez províncias em 2020 para combater o sarampo, vacinar mais de 260 mil crianças e cuidar de mais de 17.500. Em 2019, 816 mil crianças já haviam sido vacinadas por MSF contra o sarampo e 50 mil pacientes haviam recebido tratamento.

Hoje, enquanto todos os olhos estão voltados para a pandemia da COVID-19, MSF continua respondendo a outras emergências de saúde, como o sarampo, na RDC e outros países. Enquanto apoia a resposta ao novo coronavírus e adapta sua abordagem, MSF teme que haja outras emergências.

“Se os esforços estiverem concentrados apenas na COVID-19, outras grandes crises estão por vir”, alerta Emmanuel Lampaert. “Reduzir as atividades de imunização, de prevenção da malária ou de apoio nutricional tornará a situação de saúde ainda mais difícil na RDC. Isso vai causar ainda mais mortes e não podemos nos calar.”

 

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