Queimaduras são um problema crônico de saúde em Gaza

A cada ano, nossas clínicas em Gaza tratam cinco mil novas vítimas de queimaduras; a grande maioria são crianças feridas em acidentes domésticos

Foto: Tetiana Gaviuk/MSF/2021

Na clínica de Médicos Sem Fronteiras em Khan Younis, no sul de Gaza, quatro fisioterapeutas se preparam para um dia agitado. Eles usam equipamentos de proteção individual e revisam a lista de pacientes do dia: 46 pacientes no total, quase metade deles crianças em recuperação de queimaduras.

Reem Abu Lebdeh, um dos fisioterapeutas, remove as roupas de pressão de Abdallah, de 21 meses, e examina cuidadosamente as cicatrizes em suas pernas, abdômen e braço direito. Dez meses antes, Abdallah sofreu uma queimadura escaldante que danificou 50% de sua superfície corporal. Ele passou mais de dois meses no hospital e recebeu um transplante de pele de seu pai.

“Mais algumas sessões e ele poderá receber alta”, diz Abu Lebdeh. Embora seja uma boa notícia, este não é o fim do tratamento de Abdallah. “As cicatrizes não restringem seus movimentos no momento”, diz Abu Lebdeh, “mas isso pode mudar à medida que ele crescer. Ele precisará continuar usando uma roupa de pressão até que suas cicatrizes parem de crescer e ele deve ser reavaliado regularmente”.

 

Cinco mil novas vítimas de queimadura

A cada ano, as clínicas de MSF em Gaza tratam cinco mil novas vítimas de queimaduras, a grande maioria, crianças feridas em acidentes domésticos. As condições inseguras de moradia são uma das principais causas desses incidentes. Quase 70% da população de Gaza são refugiados, muitos vivem em acampamentos de refugiados, enquanto mais da metade da população vive em condições de vulnerabilidade, de acordo com as Nações Unidas. Como resultado, um grande número de pessoas vive em habitações superlotadas e inseguras, sem acesso suficiente a aquecimento, eletricidade, água potável ou saneamento.

“Muitas queimaduras poderiam ser evitadas por meio de moradias mais seguras e da educação das pessoas sobre os riscos”, diz Séverine Brunet, coordenadora de atividades de queimadura de MSF.

A algumas camas de Abdallah, no lado oposto do quarto, está Sham, uma menina de dois anos cuja queimadura também foi resultado de um acidente doméstico. A fisioterapeuta Noura Alzaeem está fazendo uma massagem na cicatriz. A família de Sham, formada por quatro pessoas, mora em um quarto alugado no acampamento de refugiados de Khan Younis, onde só há espaço para uma cama, um colchão e dois armários. Sem cozinha, a mãe de Sham cozinha no chão ao lado de fora da sala. Um dia, Sham ficou presa nos fios do fogão elétrico enquanto sua mãe cozinhava. Ela caiu e o fogão quente caiu em cima dela, queimando 10% de seu corpo.

Foto: Tetiana Gaviuk/MSF

Há três anos, o irmão mais velho de Sham, Jamal, então com dois anos, também sofreu uma queimadura após cair da cama para o fogão, queimando o rosto. Ele foi tratado em uma clínica de MSF por oito meses, diz sua mãe.

 

Um problema crônico de saúde

Em 2021, MSF tratou 5.540 novos pacientes queimados, em comparação a 4.591 em 2020 e 3.675 em 2019. Em média, mais de 60% desses pacientes eram crianças com menos de 15 anos e 35% eram crianças com menos de cinco anos. Como Abdallah e Sham, muitos ficaram feridas em acidentes domésticos causados por condições precárias de moradia.

O tratamento correto nas primeiras 48 horas é fundamental para a recuperação do paciente queimado, mas a maioria das vítimas de queimaduras – e seus familiares – não está familiarizada com os primeiros socorros para queimaduras. Pasta de dente, pó de café e molho de tomate são alguns dos itens caseiros mais aplicados nas queimaduras, enquanto algumas pessoas recorrem à água sanitária e/ou sal.

“A primeira coisa a fazer é manter a área queimada sob água corrente fria”, diz Brunet, “e se a lesão for grave, é preciso procurar tratamento médico o mais rápido possível”.

Chegar ao hospital também pode ser um desafio. Nabeel, de quatro anos, teve sua parte inferior das costas gravemente queimada após acidentalmente se apoiar em um forno quente no qual sua avó Sana assava pão. Incapaz de pagar um táxi, eles levaram uma hora para chegar ao hospital em uma carroça puxada por cavalos.

Foto: Tetiana Gaviuk/MSF

Para ter a melhor chance de recuperação, os pacientes com queimaduras graves precisam de trocas frequentes de curativos, fisioterapia e tratamento de acompanhamento, mas muitos acabam faltando às consultas devido ao aumento dos custos de transporte. MSF fornece transporte de e para sua clínica em Gaza para evitar que isso aconteça.

“Aderir a um plano de tratamento é muito importante, mas é muito desafiador para nossos pacientes em Gaza”, diz Brunet. “Além disso, a falta de higiene devido ao acesso inadequado à água potável e ao saneamento aumenta o risco de infecção e resistência a antibióticos, que é predominante em Gaza. Muitos pacientes também não têm acesso a uma boa nutrição ou têm comorbidades que retardam seu processo de cura”.

As queimaduras podem ter um impacto duradouro na saúde física e psicológica de uma pessoa, enquanto o tratamento pode exigir hospitalização prolongada e meses de cuidados de acompanhamento para evitar desfiguração e incapacidade, cuidados que o sistema de saúde de Gaza, paralisado pelo bloqueio de Israel e do Egito, não pode oferecer.

Para melhorar o acesso ao atendimento de qualidade para vítimas de queimaduras, MSF oferece tratamento de feridas e dor, fisioterapia e apoio psicossocial para vítimas de queimaduras e seus prestadores de cuidados por meio de quatro clínicas em Gaza e apoia a unidade de queimados do hospital Al-Shifa, a principal unidade de referência para todos os hospitais locais, onde uma média de 270 pacientes são tratados anualmente por queimaduras. No entanto, enquanto as pessoas continuarem a viver em habitações inadequadas e superlotadas, os efeitos das queimaduras continuarão a ser um fardo em Gaza.

 

MSF trata pacientes queimados em Gaza desde 2011. Em 2020, quando a pandemia de COVID-19 dificultou o envio de pacientes queimados para tratamento fora de Gaza, MSF começou a fornecer máscaras compressivas para vítimas de queimaduras faciais com tecnologia de digitalização e impressão 3D fabricada dentro da cidade pela primeira vez. Em 2021, MSF abriu a primeira sala de sedação em Gaza, onde crianças com queimaduras graves podem ter seus curativos trocados e receber fisioterapia sob anestesia sem ir ao centro cirúrgico.

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