“Quando soma-se tudo, você está olhando para uma situação devastadora para o povo do Iêmen”

Robert Onus, ex-coordenador-geral de MSF no Iêmen, descreve o impacto do conflito de quatro anos para as pessoas em todo o país

“Quando soma-se tudo, você está olhando para uma situação devastadora para o povo do Iêmen”

Como a guerra afetou as pessoas no Iêmen?
Pode-se realmente ver como, ano após ano, o efeito da guerra dizimou grande parte da sociedade iemenita. A infraestrutura de saúde pública entrou em colapso. A infraestrutura de água e saneamento está entrando em colapso. Mais e mais pessoas estão lutando para encontrar comida. Cada vez menos pessoas têm empregos.

Você vê o impacto direto da guerra na vida das pessoas. Você vê civis sendo feridos, você vê pessoas sendo mortas em ataques aéreos e por bombardeios e tiros. Você também vê pessoas morrendo de doenças evitáveis. Você vê crianças morrendo de doenças que poderiam ser evitáveis com a vacinação – elas não receberam as vacinas porque o sistema de saúde onde elas vivem não existe mais.

Vemos o impacto da guerra nas crianças desnutridas que chegam aos nossos hospitais: crianças que não têm o suficiente para comer; famílias que não têm o suficiente para comer.

Em todo o país, não importa para onde você olhe ou para qual parte da sociedade, o impacto da guerra na vida das pessoas é muito visível.

As pessoas podem acessar os serviços de saúde?
O sistema de saúde foi destruído diretamente pelo conflito – sendo bombardeado. Mas também foi indiretamente destruído pela falta de financiamento, pela falta de remédios e pela falta de profissionais, que não são pagos há mais de dois anos.

Nos quatro anos desde que o conflito se intensificou, o acesso das pessoas à assistência médica diminuiu drasticamente. Se você mora em uma área rural no Iêmen, um cenário provável é que o centro de saúde mais próximo não funcione. Se estiver aberto, provavelmente será apenas por alguns dias na semana, porque há apenas um médico que pode visitar o local sem ser pago e com o mínimo de remédios. Se você tem uma emergência e o centro de saúde está fechado, você tem que viajar para mais longe, até uma instalação que ainda esteja funcionando, que provavelmente é particular, e você não pode pagar pelo tratamento. Não importa de que maneira você olhe, é uma situação devastadora.

Como o conflito afetou as pessoas em Taiz?
MSF tem fornecido cuidados de saúde na província de Taiz em ambos os lados das frentes de batalha desde o início do presente conflito. MSF é efetivamente a única organização internacional que opera dentro da cidade de Taiz, considerada uma cidade “com enclaves” [com áreas controladas por uma parte do conflito completamente cercada por áreas controladas por outra].

Apoiamos vários hospitais e vemos enormes necessidades por parte dos civis feridos pelo conflito. Vemos enormes necessidades em relação às crianças que precisam de acesso a cuidados hospitalares e internação hospitalar. Também vemos grandes necessidades por parte de mulheres que precisam de um lugar seguro para dar à luz. Essas são necessidades recorrentes. Essas são necessidades que todos entendem como garantidas na Alemanha ou na Austrália.

Além dessas necessidades básicas, com o sistema de saúde em ruínas, vemos um aumento nas epidemias e nas doenças que poderiam ser evitadas por vacinação. Neste momento, há uma epidemia de dengue, que é uma doença sazonal no Iêmen, mas este ano está muito pior do que no passado porque a infraestrutura de água e saneamento da cidade foi dizimada.

A infraestrutura hospitalar realmente desmoronou por causa do conflito. No ano passado, por exemplo, assistimos a um surto de cólera em larga escala. Ano após ano, veremos epidemias e doenças evitáveis por vacinação no Iêmen. A cidade de Taiz é um exemplo perfeito disso. É um microcosmo do que vemos em todo o país.

Quais desafios diários as pessoas enfrentam?
As pessoas não se sentem seguras fora de suas casas. Você pode absolutamente entender como é difícil para as pessoas seguirem suas vidas, olhar para frente, com algum tipo de esperança, para uma resolução. Mas, apesar de todas as dificuldades, vemos essa esperança, vemos essa resiliência, nos pacientes que chegam aos nossos hospitais. Também vemos isso no tecido social das comunidades em que trabalhamos. As pessoas têm uma enorme capacidade para lidar com as lutas e os perigos do conflito. É impressionante – é algo que me surpreende todos os dias.

É uma verdadeira luta, não só para o povo iemenita, mas também para as nossas equipes – inclusive para mim pessoalmente – viver isso todos os dias e saber que a resolução desse conflito ainda está muito distante.

Quais são os desafios para as organizações de ajuda que trabalham no Iêmen? 
O Iêmen é um lugar incrivelmente difícil de se trabalhar para organizações internacionais. Trabalhar em uma zona de conflito sempre será difícil e haverá perigo associado a isso. Mas há muitos obstáculos a superar para poder trabalhar neste país.

Em parte isso se deve à politização da ajuda no Iêmen. As partes do conflito estão muito interessadas em onde a ajuda é entregue. Como organização humanitária, é absolutamente essencial manter nossa independência e neutralidade, mas também é muito difícil.

As organizações de ajuda precisam sempre fazer um esforço para superar as dificuldades e as barreiras de segurança para que possam alcançar as pessoas mais necessitadas. As pessoas que vivem no meio do conflito são diretamente afetadas por ele diariamente, por exemplo, os moradores de Taiz – eles são os que mais precisam.

A pressão imposta às organizações de ajuda pelas autoridades é uma preocupação real – tanto para MSF quanto para a comunidade humanitária como um todo. Se a ajuda humanitária não permanece independente em relação ao conflito, e independente dos interesses das partes envolvidas, ela fica comprometida e pode facilmente ser distorcida em uma vertente do conflito. Isso é o que precisamos evitar.

O que precisa acontecer para reduzir o sofrimento do povo iemenita?
Para aliviar o sofrimento do povo iemenita, primeiro é necessário que haja assistência humanitária adequada e independente no país – incluindo assistência alimentar, apoio nutricional, água e saneamento e reabilitação de instalações de saúde. Isso é essencial.

Em segundo lugar, a população civil precisa ser protegida – é um direito fundamental que não sejam alvo durante o conflito. E isso precisa ser tratado pela alta cúpula. Porque vemos em nossos hospitais todos os dias que as pessoas estão sendo feridas e mortas como resultado do conflito. São pessoas que estão simplesmente cuidando de suas vidas diárias. Não é apenas essencial que os civis sejam protegidos do conflito, mas também a infraestrutura civil – hospitais, escolas, estradas, o transporte seguro de bens em todo o país para alimentar a população – tudo isso precisa ser protegido do conflito em curso.
 

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