Projetos de saúde mental em respostas humanitárias: 7 perguntas e respostas

Entrevista com Itw Marcos Moyano, coordenador da equipe de saúde mental de MSF

Foto: MSF/Tracy Makhlouf

O apoio de saúde mental nos contextos em que Médicos Sem Fronteiras (MSF) atua pode ser crucial para ajudar as pessoas a lidarem com situações relacionadas a desastres naturais, os traumas de uma violência, uma perigosa jornada de migração ou os desafios que a pandemia da COVID-19 impôs na rotina de todos no mundo, em especial aos mais vulneráveis. Hoje, os cuidados de saúde mental estão na linha de frente dos projetos de MSF em vários países de diferentes continentes. Nos últimos 10 anos, as consultas de saúde mental em nossos programas aumentaram 230% em todo o mundo.

Entrevistamos Marcos Moyano, coordenador da equipe de saúde mental de MSF, sobre como conduzir projetos de saúde mental durante respostas humanitárias. Confira a seguir:

1. Como é prestar cuidados de saúde mental em contextos humanitários?

Existem muitos aspectos quando se fala sobre saúde mental; um são as necessidades significativas de saúde mental que encontramos nesses ambientes, geralmente associadas à falta de acesso a cuidados de boa qualidade. Embora existam tratamentos eficazes para problemas de saúde mental, em países de baixa e média renda, menos de 10% das pessoas que precisam deles podem receber tratamento adequado. É por isso que, em todo o mundo, as pessoas com problemas de saúde mental representam um dos grupos mais marginalizados e vulneráveis.

O Dia Mundial da Saúde Mental, lembrado em 10 de outubro, é um momento para destacarmos a enorme lacuna que as pessoas que vivem em países de baixa e média renda ainda enfrentam ao tentarem ter acesso a tratamentos de saúde mental de boa qualidade, além da necessidade de mais investimentos nessa área. Como quase não há organizações oferecendo isso nos contextos em que trabalhamos, organizações como MSF precisam criar seus próprios programas de saúde mental e desenvolver e fornecer os serviços por conta própria ou em colaboração com outros atores. Não se trata apenas de saúde mental, temos que atender às necessidades globais de saúde e a todas as condições médicas, pois todos sabemos que a recuperação do corpo não pode acontecer sem saúde mental e vice-versa. A saúde física e a saúde mental são como dois lados da mesma moeda.

2. Quais são os diferentes tipos de cuidados de saúde mental que MSF oferece?

Embora existam diferentes respostas baseadas em evidências que são recomendadas para diferentes tipos de ambientes, é importante ter em mente que trabalhamos em muitas culturas variadas e os cuidados de saúde mental que oferecemos devem ser adaptados localmente. Normalmente, há diferentes tipos de projetos de saúde mental. Isso é chamado de saúde mental e apoio psicossocial.

Existem algumas formas de apoio que podem ser fornecidas por agentes comunitários ou por profissionais de saúde mental treinados e não especializados, por exemplo, uma sessão de conscientização sobre depressão. Depois, há tratamentos que devem ser conduzidos por especialistas em saúde mental, como conselheiros treinados, psicólogos e psiquiatras. Médicos treinados também podem fornecer alguns cuidados psiquiátricos básicos. Acho que ser capaz de implantar atendimento especializado em saúde mental rapidamente é algo que diferencia MSF.

Independentemente de como respondemos, nos concentramos no que o paciente gostaria de alcançar e no que achamos que ele necessita. Por exemplo, ajudaremos alguém que sobreviveu a um ataque violento a entender e lidar com o que aconteceu com ele. A base do cuidado em saúde mental depende realmente da situação e das necessidades da população, mas também das necessidades específicas daquele paciente, ligadas ao seu sofrimento ou dificuldades. O apoio pode, então, ser fornecido através de aconselhamento em grupo, uma sessão de apoio de pares ou como atendimento individual e por muitos tipos diferentes de profissionais, dependendo das necessidades.

Em 2020, MSF realizou cerca de 349.500 consultas individuais de saúde mental, o que é uma marca bastante significativa em termos de prestação de cuidados mentais em todo o mundo.

3. Você tem um exemplo de situação em que MSF esteja prestando cuidados de saúde mental?

Visitei recentemente os projetos de MSF em Atenas e na ilha grega de Samos, onde nossos psicoterapeutas clínicos e psiquiatras fornecem apoio especializado em saúde mental para refugiados, migrantes e requerentes de asilo. As pessoas que ajudamos vêm de lugares como a República Democrática do Congo, Síria, Afeganistão e Iêmen. A maioria, se não todos, foi exposta a vários eventos traumáticos em seus países de origem (incluindo guerra, sequestro e tortura) e enfrentou outros traumas violentos em suas jornadas para a Europa. E depois, eles devem lidar com detenção prolongada na Grécia, vivendo em situações muito precárias, sem suas necessidades básicas atendidas e com exposição contínua a mais violência e estresse. As pessoas que apoiamos nesses projetos têm sua resiliência e mecanismos de enfrentamento, mas, com todo o sofrimento a que foram expostas, muitas vezes têm uma das piores necessidades de saúde mental que já vimos. No entanto, existem muito poucas organizações que oferecem atendimento especializado para eles. Esperamos ver outros atores se preparando para apoiar esses serviços médicos tão necessários.

4. Quais são os desafios ligados ao contexto e à realidade das populações que atendemos?

A principal dificuldade é a falta de profissionais de saúde mental. Acho que o outro desafio é que a saúde mental não é um componente separado de outros aspectos da vida. Na maioria das situações, as necessidades básicas das pessoas, como comida, água, abrigo e segurança, também não são atendidas. As pessoas precisam estar fisicamente bem e viver em um ambiente seguro para estarem mentalmente bem. Mas como organização médica, nem sempre podemos ter um impacto em todos os aspectos de suas vidas.

5. Com relação ao estigma e aos tabus, que podem ser bastante prevalentes nos contextos onde MSF trabalha, como as equipes de MSF lidam com essas barreiras para ter acesso a suporte de saúde mental?

Nossas equipes organizam sessões de conscientização sobre saúde mental para enfrentar os tabus e o estigma, tornando a saúde mental o foco das discussões em grupo. Fazemos o mesmo para a população a nível comunitário. Também realizamos sessões de treinamento para membros-chave da comunidade, incluindo equipes de saúde, líderes comunitários e professores. Sabemos que isso pode ajudar a corrigir seus equívocos sobre saúde mental e ajudá-los a desenvolver ainda mais seus conhecimentos, pois os auxiliará a identificar pessoas que possam precisar de apoio. Outra forma de reduzir o estigma que normalmente vemos nos locais onde trabalhamos é quando as pessoas que estão a receber cuidados passam a ver a evolução de suas condições de saúde mental. Essas ações combinadas dão às comunidades, pouco a pouco, espaço para falar abertamente sobre questões de saúde mental e a importância de acessar os serviços de saúde mental. Afinal, é fundamental ter um serviço que preste atendimento às pessoas efetivamente e que faça a diferença para elas.

6. Como os cuidados com a saúde mental evoluíram ao longo dos anos e como isso pode mudar no futuro?

Na última década, houve um progresso significativo em termos de conscientização das necessidades de saúde mental e da lacuna existente na prestação de cuidados de qualidade. Hoje em dia, governos, doadores e, em geral, a comunidade internacional estão muito mais atentos a isso. É por isso que a campanha de saúde mental da Organização Mundial de Saúde (OMS) deste ano se chama “Atenção à saúde mental para todos: vamos torná-la realidade”. O foco é tanto a lacuna que ainda permanece sobre quem pode ter acesso aos cuidados de saúde mental, quanto os esforços e o progresso que diferentes países têm feito. Com a pandemia de COVID-19, vimos a saúde mental amplamente reconhecida como um aspecto essencial para o bem-estar da população e, portanto, houve investimentos para sustentar e ampliar a prestação de serviços de saúde mental globalmente. Nos últimos 18 meses, testemunhamos muitas inovações no campo dos “cuidados remotos” que me deixam otimista sobre a acessibilidade dos serviços de saúde mental para pessoas vulneráveis no futuro.

Nos próximos anos, acho que continuaremos a enfrentar níveis tremendos de sofrimento humano relacionados a desastres naturais e causados pelo homem, o que desafiará a capacidade de governos e organizações de responder com eficácia. Em contraste, a resiliência das comunidades e a força das organizações locais e voluntários terão um papel fundamental na proteção e apoio aos que necessitam de cuidados.

7. Uma conclusão:

Gostaria de reconhecer o trabalho inspirador de nossas equipes de saúde mental em todo o mundo e os valores humanitários e profissionalismo que demonstram todos os dias. Graças a eles, somos capazes de prestar um atendimento tão bom às pessoas necessitadas.

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