Profissional de MSF forçada a se deslocar 11 vezes em Gaza faz relato de sobrevivência

“A explosão não apenas sacudiu o chão; ela destruiu nossos corações. Nossa casa, com todas as nossas memórias, desapareceu”, lamenta Sabreen Almaseri

A intensificação das operações militares das forças israelenses na Cidade de Gaza tem consequências humanitárias catastróficas. Com 86% de Gaza sob ordens de evacuação ou transformada em zonas militarizadas, as áreas restantes estão superlotadas e impróprias para a sobrevivência, quase sem acesso a alimentos, água ou cuidados de saúde.

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Profissionais de Médicos Sem Fronteiras (MSF) foram repetidamente forçados a fugir, algumas pessoas mais de 10 vezes desde o início desta guerra. Sabreen Almaseri é fisioterapeuta e trabalha em MSF há cinco anos. No dia 19 de agosto, as forças israelenses destruíram sua casa na Cidade de Gaza, fazendo com que ela e sua família tivessem que se deslocar pela 11ª vez.

Leia o relato de Sabreen:

“Duas semanas atrás, quando a situação perto da minha casa, no bairro de Saftawi, parecia mais calma, decidimos voltar para casa. Havia novos danos ao prédio, mas senti alegria novamente por estar dentro da minha casa: a casa que faz parte da minha alma, o lugar que amo profundamente. Minha casa representava uma jornada de 13 anos de luta e perseverança. Até dia 19 de agosto.

A explosão não apenas sacudiu o chão; ela destruiu nossos corações. Nossa casa, com todas as nossas memórias, desapareceu.”

Eu estava voltando do trabalho para casa quando vi pessoas correndo, mulheres gritando e chorando. Meu telefone tocou – era meu marido. Ele me disse: ‘Volte rápido. Eles emitiram um alerta para toda a área. Vão bombardeá-la’. Ele disse que tínhamos apenas alguns minutos.

Encontrei meu marido e nossas filhas em uma rua próxima. Elas estavam chorando de medo. Eu as abracei com força e seguimos para outra rua. Momentos depois, ouvimos o ataque. A explosão não apenas sacudiu o chão; ela destruiu nossos corações. Nossa casa, com todas as nossas memórias, desapareceu.

Eu trabalho em MSF desde 2018. Desde o início, meu objetivo sempre foi fazer tudo o que posso para ajudar os pacientes e tratar pessoas feridas para se recuperarem de traumas físicos.

As pessoas aqui estão exaustas, abatidas, mas ainda assim tentam seguir em frente e encontrar motivos para sorrir.”

Eu nunca fui apenas uma fisioterapeuta. Apoiei meus pacientes emocionalmente, ouvi suas histórias e lhes dei conforto enquanto compartilhavam suas dores. Por trás de cada paciente havia uma história comovente, uma vida marcada pelo sofrimento. As pessoas aqui estão exaustas, abatidas, mas ainda assim tentam seguir em frente e encontrar motivos para sorrir.

O dia em que nossas vidas mudaram para sempre

Nunca esquecerei a primeira vez que fomos forçados a deixar nossa casa no norte de Gaza, apenas uma semana após o início da guerra. Um círculo de fogo nos cercava. Meu marido, minhas filhas e eu nos agarramos uns aos outros, pensando que estávamos dando nossos últimos suspiros. Foi aterrorizante, estilhaços voavam sobre nossas cabeças.

Nosso prédio estava danificado; as portas e janelas haviam sido destruídas pelos ataques. Havia sangue no chão, poeira, pedras e cinzas enchiam o ar. Minha filha do meio estava vomitando de medo, a mais nova implorava para que a abraçássemos com mais força. Formamos um círculo, abraçados uns aos outros, antes de nos encontrarmos na rua, chorando, desabrigados novamente.
Depois que fomos deslocados de Safatawi, nos mudamos para outro lugar na Cidade de Gaza.

Pouco depois, sobrevivemos por pouco a outro bombardeio que ceifou mais de 500 vidas. Mais tarde, fomos forçados a fugir para o Sul. Não pude retornar ao norte de Gaza até o cessar-fogo, em meados de janeiro de 2025. Durante um ano e meio, vivemos entre o deslocamento e o medo, esperando e ansiando por meus pais, meus irmãos e pela casa que deixei para trás sem saber o que havia acontecido com ela.

Um momento de paz

Quando finalmente vi minha casa – durante o cessar-fogo – pude respirar aliviada. Ela ainda estava de pé, parcialmente danificada, mas ainda habitável. Consertamos o que pudemos. Fechamos os buracos nas paredes, cobrimos as janelas quebradas com lonas plásticas e construímos portas improvisadas. Limpamos os escombros e voltamos a morar ali.

Mas nossa alegria durou pouco, pois a trégua terminou e os bombardeios voltaram com ainda mais intensidade. Fugimos novamente, desta vez dentro da Cidade de Gaza, vivendo em uma barraca, suportando o calor sufocante do verão, a dificuldade de carregar água e a dureza da vida cotidiana no deslocamento.

Há duas semanas, depois que finalmente voltamos para nossa casa, esperávamos que talvez estivéssemos seguros. Mas essa esperança foi novamente destruída junto com nossa casa e nossos pertences.

Mais uma vez, fomos deslocados. Esta é a décima primeira vez que somos forçados a fugir desde o início desta guerra. Mas desta vez é a mais difícil, porque sei que nunca mais voltarei para minha casa.”

 

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