Pressão comercial dos EUA pode interferir em acesso a medicamentos no Brasil

Investigação aberta por Washington ecoa pressão de grandes farmacêuticas ao acusar sem fundamento Brasil de não adotar medidas de proteção à propriedade intelectual

©Farah Tanjee/MSF

O governo dos Estados Unidos (EUA) está pressionando o Brasil a estabelecer medidas relacionadas à propriedade intelectual que interferem na autonomia do país em decisões referentes à saúde pública e podem atrasar ou inviabilizar a disponibilização de medicamentos mais acessíveis para a população.

Os questionamentos ao Brasil nesta área fazem parte de uma investigação mais ampla do escritório do Representante Comercial dos Estados Unidos (USTR, na sigla em inglês) para apurar políticas e práticas que supostamente discriminam ou restringem ilegalmente o comércio com os Estados Unidos. Entre os muitos temas sob investigação (como tarifas, mercado de etanol e sistemas de pagamentos eletrônicos), os EUA visam interferir também nas políticas brasileiras de proteção da propriedade intelectual.

Médicos Sem Fronteiras (MSF) enviou comentários à investigação do governo norte-americano e deve participar da audiência referente ao processo, prevista para 3 de setembro em Washington. A manifestação ocorre em linha com outras ações realizadas historicamente por MSF, já que a organização se opõe aos processos do USTR que visam pressionar países a não utilizarem as salvaguardas de saúde pública e a implementarem práticas relacionadas à proteção da propriedade intelectual que vão além das obrigações assumidas no âmbito internacional, inclusive pelos EUA.

A vida das pessoas não deveria nunca ser usada como moeda de troca nas negociações comerciais. Os EUA precisam parar de utilizar a política comercial para sustentar monopólios comerciais às custas dos pacientes”,

– Mihir Mankad, diretor de Advocacy e Políticas de Saúde Global de MSF-EUA

“Forçar o Brasil a adotar medidas de propriedade intelectual que excedem em muito os requisitos dos acordos internacionais só tornará os medicamentos ainda mais inacessíveis. O mundo deve ver isso como o que realmente é: um ataque ao direito à saúde e aos instrumentos legais estabelecidos disponíveis aos países para concretizá-lo”, continua Mihir Mankad.

Essas práticas dos EUA têm interferido com o direito e a obrigação de diversos países, não apenas do Brasil, de garantir a proteção da saúde pública e a promoção do acesso a medicamentos. Visando blindar os interesses das empresas farmacêuticas, além do Brasil, o USTR tem historicamente ameaçado países como Índia, China, Malásia, Chile, Colômbia e vários outros por seus critérios de patenteabilidade, uso de licenciamento compulsório, ausência de exclusividades de mercado adicionais, entre outros.

Ramya, médica de MSF, realiza exame físico em uma paciente com tuberculose resistente a medicamentos durante consulta de acompanhamento. Índia, outubro de 2023. ©Siddhesh Gunandekar/MSF

Nesse contexto, MSF testemunha os efeitos nocivos de políticas que protegem interesses comerciais em detrimento das necessidades dos pacientes. Como MSF frequentemente depende de medicamentos, vacinas e testes diagnósticos adquiridos por governos nacionais, as barreiras à disponibilidade e à acessibilidade afetam diretamente nossa capacidade de prestar cuidados e responder eficazmente às necessidades médicas em nossas operações.

Exemplos concretos disso são que barreiras de patentes e de exclusividade de dados impedem o acesso a versões genéricas acessíveis do lenacapavir para a prevenção de longa duração do HIV, atrasaram o acesso a versões genéricas acessíveis da bedaquilina para a tuberculose resistente a medicamentos, restringiram a expansão de medicamentos e dispositivos médicos para o tratamento da diabetes e mantem os preços elevados para testes moleculares rápidos como o GeneXpert, limitando a sua disponibilidade em locais com poucos recursos, incluindo onde MSF mantém projetos.

Entenda na prática:
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No âmbito da atual investigação contra o Brasil, concentramos nossa submissão em três questões relacionadas à propriedade intelectual e produtos farmacêuticos: pendência de pedidos de patente, produtos falsificados e uso comercial ou divulgação desleal de dados de testes.

O documento de início da investigação do USTR critica o tempo de análise dos pedidos de patente e seu potencial impacto no tempo de vigência da proteção. As críticas não têm fundamento porque a política brasileira de exame de patentes é rigorosa e está em conformidade com as obrigações internacionais. Ao contrário de alguns países que adotaram apenas o exame formal de pedidos de patente, o Brasil possui um sistema de busca e exame substantivo, segundo o qual todos os pedidos de patente devem ser examinados antes de serem concedidos, para garantir que os critérios de patenteabilidade tenham sido atendidos. Critérios rigorosos de exame são essenciais para evitar a emissão de patentes de baixa qualidade, que restringem a concorrência e limitam o acesso a tecnologias em saúde.

No que diz respeito a medidas de fronteira relacionadas a produtos falsificados, MSF há muito tempo alerta que regras antifalsificação excessivamente amplas aumentam o risco de apreensões indevidas de medicamentos genéricos legítimos pelas autoridades alfandegárias. Isso pode levar a atrasos prejudiciais para pessoas que precisam de acesso a medicamentos que salvam vidas. Ademais, a detenção e a potencial destruição de medicamentos erroneamente classificados como falsificados podem criar um efeito inibidor sobre o comércio internacional de medicamentos genéricos.

A investigação do USTR ainda critica a suposta falta de proteção no Brasil contra o uso comercial desleal, bem como a divulgação não autorizada de testes e outros dados gerados para obter aprovação de comercialização de produtos farmacêuticos. Mas a legislação brasileira já adota medidas adequadas contra o uso e a divulgação indevidos de dados de teste. O que ela não contempla é a chamada exclusividade de dados, que o USTR historicamente pressiona os países a adotarem, apesar de estar além da proteção requerida por acordos internacionais.

A exclusividade de dados é uma medida que aumenta o custo de desenvolvimento de medicamentos genéricos, além de ser uma grave violação dos princípios éticos da pesquisa envolvendo seres humanos. Ela proíbe as agências reguladoras de se referirem a dados de testes submetidos pela empresa que gerou os dados (medicamento de referência) como parte do processo de aprovação regulatória de medicamentos genéricos. Isso obriga o fabricante de genéricos a reapresentar todos os dados – incluindo informações obtidas apenas em estudos em humanos (ensaios clínicos) – que demonstrem a eficácia e segurança do produto, e não apenas os dados relacionados à qualidade e equivalência terapêutica do medicamento, como é exigido hoje no Brasil.

“Os Estados Unidos estão colocando os interesses comerciais de empresas farmacêuticas acima dos interesses de todas as pessoas que precisam de acesso a medicamentos”, afirma Rachel Soeiro, Coordenadora do Hub das Américas de MSF Acesso. “A pressão pode gerar medidas que tornarão ainda mais difícil o acesso a medicamentos, mesmo durante uma crise sanitária global, como vimos recentemente”.

Desde 1999, a Campanha de Acesso a Medicamentos Essenciais de Médicos Sem Fronteiras existe para melhorar o acesso às tecnologias existentes, como medicamentos, métodos de diagnóstico e vacinas e para estimular o desenvolvimento de novas e acessíveis ferramentas nos países em desenvolvimento em que MSF está presente. Em nosso trabalho, enfrentamos dois grandes desafios: o alto custo dos medicamentos existentes e a falta de tratamento para muitas das doenças que afetam nossos pacientes.

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