Por que a crise climática é também uma crise humanitária e de saúde?

Quatro exemplos do impacto que as mudanças climáticas têm sobre a saúde humana

Foto: Mohammad Ghannam/MSF

Médicos Sem Fronteiras (MSF) atua em alguns dos ambientes mais vulneráveis ao clima no mundo. Em muitos países onde trabalhamos, nossas equipes médico-humanitárias já estão respondendo a situações relacionadas às mudanças no meio ambiente. Isso inclui o aumento de doenças infecciosas, como malária, dengue e cólera, resultado de mudanças nos padrões de chuva e temperatura; o aumento das doenças zoonóticas (transmitidas entre animais e pessoas), em razão de eventos climáticos extremos mais frequentes, como ciclones, furacões; e a desnutrição causada por secas e enchentes.

“As equipes de MSF são compostas de profissionais médico-humanitários, não de cientistas climáticos, mas, após anos testemunhando diretamente como a mudança climática agravou crises sanitárias e humanitárias em diversos contextos onde atuamos, precisamos falar sobre o que vemos”, afirma Carol Devine, conselheira para assuntos humanitários e líder de inteligência climática de MSF.

Veja quatros contextos que mostram o porquê a emergência climática é uma ameaça à saúde e ao bem-estar das pessoas em todo o mundo.

1 – Insegurança alimentar e desnutrição

Foto: Solen Mourlon/MSF

Quando há pouca água, não é possível cultivar e produzir alimentos. As secas aumentam a insegurança alimentar e a desnutrição. Por outro lado, o excesso de água pode gerar pragas e doenças que prejudicam as colheitas. O aumento do nível do mar, ao trazer água salgada para as áreas costeiras, torna a agricultura impossível, o que também afeta os sistemas de produção de alimentos.

Em 2021, a Organização das Nações Unidas (ONU) anunciou que Madagascar estava prestes a enfrentar a primeira crise climática de fome no mundo. Três anos consecutivos de seca afetaram gravemente as colheitas e o acesso aos alimentos em regiões ao sul do país. A seca também exacerbou a “estação de escassez” (período entre plantio e colheita) anual, resultando em uma crise alimentar e nutricional aguda. Em resposta, MSF lançou um programa médico-nutricional, a fim de examinar e tratar comunidades com desnutrição aguda.

Ao longo de 20 anos de conflito, a instabilidade política e as condições climáticas extremas levaram a uma das crises humanitárias mais prolongadas do mundo na Somália. Enchentes intensas e frequentes, secas e enxames de gafanhotos diminuíram os meios de subsistência da população e comprometeram a segurança alimentar, atingindo principalmente as crianças. Em resposta, MSF administra um programa de combate à fome no sul da Somália que visa a prevenir e a tratar a desnutrição aguda durante a estação de escassez por meio de vigilância ativa, triagem e atendimento ambulatorial. Nas regiões de Gedo e Baixo Juba, iniciamos três respostas de emergência em 2021 para tratar crianças com desnutrição aguda grave e abordar a escassez crítica de água.

2 – Doenças transmitidas por vetores

Foto: Mario Fawaz/MSF

Quando o tempo se torna mais quente e os padrões de chuva mudam, os insetos — como mosquitos que transmitem doenças como malária, dengue e chikungunya — reproduzem-se mais rapidamente e sobrevivem em lugares onde não sobreviviam antes, expondo mais pessoas a essas doenças potencialmente mortais. Estima-se que a mudança climática causará aproximadamente 15 milhões de casos adicionais de malária a cada ano. Os casos de dengue aumentaram 10 vezes nos últimos 20 anos, e o vírus está agora presente em mais de 100 países. A mudança do clima também significa que veremos mais carrapatos e as enfermidades que carregam, como a doença de Lyme.

Na América Central, no final de 2020, os furacões Eta e Iota danificaram ou destruíram mais de 120 centros de saúde em Honduras. Dois milhões de pessoas ficaram com o acesso a cuidados limitado ou nulo. Hospitais lutavam para acomodar pacientes da COVID-19, enquanto um surto de dengue — o pior em 50 anos — provocado por mosquitos resistentes atingia a população. Agora, vemos doenças transmitidas por vetores em ambientes urbanos em uma escala maior. Durante a epidemia de dengue, MSF tratou mais de 5 mil pacientes, principalmente crianças com menos de 15 anos de idade que viviam em áreas urbanas empobrecidas. Apoiamos o sistema de saúde local com atividades de controle de vetores e um sistema de vigilância da dengue para prevenir surtos.

3 – Doenças transmitidas pela água

Foto: Sean Sutton

Quando eventos climáticos extremos, como ciclones e inundações, ocorrem, eles podem provocar ferimentos, morte e doenças potencialmente letais, como a cólera, que, junto com a hepatite E e a gastroenterite viral, entre outras, pode espalhar-se pela água e pelos alimentos.

A população em Bentiu, ao norte do Sudão do Sul, está enfrentando surtos de doenças infecciosas e transmitidas pela água, aumento da insegurança alimentar e desnutrição em razão de algumas das enchentes mais graves das últimas décadas. Mais de 800 mil pessoas em todo o país foram afetadas pelas inundações. Estima-se que 32 mil pessoas fugiram das cheias nos vilarejos e condados de Guit e Nhyaldu e agora vivem em quatro acampamentos improvisados na cidade de Bentiu.

 

Quando as enchentes vieram, tudo foi destruído. Tivemos que deixar nossa casa. Agora, estamos sofrendo, porque não temos o essencial, como lençóis de plástico, água limpa, nem comida suficiente. Meu desejo para o futuro é que a água baixe para que as pessoas possam voltar para suas casas, porque agora estamos todos morando no mesmo lugar. Não temos comida suficiente. – Johnson Gailuak, 28 anos, ficou desabrigado por causa das enchentes no Sudão do Sul.

 

Foto: Njiiri Karago/MSF

Com o afluxo de pessoas no acampamento de Bentiu, o hospital de MSF ficou completamente sobrecarregado. Até novembro de 2021, nossas equipes atenderam, em média, 180 pacientes por dia, a maioria crianças menores de 5 anos de idade, que sofriam de malária, infecções do trato respiratório e desnutrição. Adicionamos 45 leitos a nosso hospital de 135 leitos, com um aumento de 35% nas admissões de agosto a outubro. Nossas equipes converteram ainda uma sala de reuniões, bem como a capacidade da área de isolamento restante, em departamentos ambulatoriais e em uma enfermaria pediátrica para acomodar mais pacientes.

“Fomos desalojados pela enchente. Estamos morando aqui [em um acampamento improvisado em Rubkoina] há um mês. A vida aqui é muito desafiadora. Percorremos longas distâncias para conseguir lenha, da qual dependemos para a sobrevivência de nossos filhos. A comida, definitivamente, não é suficiente. Às vezes, conseguimos um pouco de comida; às vezes, não. Não tenho desejos para o futuro, pois todos os lugares foram afetados pelas enchentes. Desejamos apenas que a água desça” – Nyakoang Ruoth Reath Ruai, que foi deslocada pelas enchentes no estado de Unity e agora vive em um acampamento improvisado na cidade de Rubkona.

Milhares de pessoas também foram forçadas a fugir de Haat, no oeste do condado de Ayod, por causa das inundações. Agora, estão em ilhas congestionadas também afetadas pelas chuvas. Animais mortos e doentes estão por toda parte. As condições de vida são extremamente precárias, com falta de água potável, latrinas, abrigos, cobertores, redes mosquiteiras e meios básicos para cozinhar.

“Fui a lugares onde as famílias perderam tudo. Boa parte da população ali não sabe nadar. Quando precisam migrar na enchente, necessitam de canoa, o que nem todos têm. Elas fazem os diques — barragem da água feita com materiais como pedra, terra etc. — com a mão e tiram a água com baldes, que são doados. Se ninguém doar, elas não têm. As enchentes bloqueiam o acesso à saúde e aos alimentos. As pessoas adoecem e precisam viver em áreas aglomeradas, porque é o espaço que sobrou seco. Isso aumenta a quantidade de doenças. Não há latrinas, então são obrigadas a fazer suas necessidades fisiológicas ali, ou na área seca, ou na água — a mesma água que usam para beber, cozinhar, lavar a roupa e tomar banho. Então, quando você chega a esses lugares, encontra muitas pessoas bem doentes”, afirma Damaris Giuliana, que atuou no Sudão do Sul entre outubro de 2020 e outubro de 2021.

4 – Migração climática e deslocamento populacional

Foto: Ghada Safaan/MSF

A mudança climática está influenciando cada vez mais a mobilidade humana, à medida que mais lugares se tornam inabitáveis. Estima-se que, até 2050, 2 bilhões e meio de pessoas sejam acrescentadas aos ambientes urbanos — onde podem enfrentar o desafio de viver em periferias superlotadas e pouco higiênicas —, com 90% desse aumento ocorrendo na Ásia e na África.

As regiões que passam por fortes choques climáticos costumam abrigar comunidades densamente povoadas e empobrecidas. Esses locais de pontos críticos incluem grandes deltas de rios no sul da Ásia; regiões semiáridas na África e no Oriente Médio; geleiras e bacias hidrográficas na Ásia Central; ilhas baixas e regiões costeiras vulneráveis ao aumento do nível do mar; e áreas cada vez mais afetadas por eventos climáticos extremos, incluindo América Central, Caribe e Pacífico. MSF tem operações de grande escala em vários desses locais de pontos críticos climáticos e responde continuamente ao deslocamento da população causado por tempestades, enchentes e secas, incluindo Haiti, Bangladesh, Nigéria, Somália e Iêmen.

 

Mitigando nosso impacto

Reconhecemos que, como uma grande organização internacional, temos um papel importante a desempenhar na redução de nosso impacto no clima. Estamos adaptando progressivamente a forma como trabalhamos para garantir que sejamos ambientalmente responsáveis e que nossas atividades não causem danos às pessoas que procuramos ajudar. Para que possamos mudar nossas práticas, desenvolvemos um kit de ferramentas para medir e mitigar nossa pegada ecológica, incluindo emissões de carbono, gases de efeito estufa e outros elementos que contribuem para a degradação ambiental.

Entre nossas ações, estão a redução de nossa pegada de carbono e também de viagens aéreas não essenciais. Estamos trabalhando ainda para garantir uma cadeia de suprimentos eficiente e socialmente responsável, a fim de reduzir, reutilizar e reciclar materiais e equipamentos médicos — como mosquiteiros, contêineres de transporte ou equipamentos de proteção individual —, e desenvolvendo novas soluções de energia, como o uso de painéis solares para alimentar algumas de nossas atividades médicas, bem como abordagens inovadoras que respondam aos ambientes em que trabalhamos.

Foto: Pablo Garrigos/MSF
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