Perspectiva da guerra a partir de uma sala de atendimento de emergência

Dr. Sohaib Safi, assessor médico adjunto do projeto de MSF em Gaza, conforme relato a Linda Nyholm, ex-gerente de comunicações de campo na Palestina

O Dr. Sohaib Safi trabalhou na sala de emergência do hospital Al-Aqsa, em Gaza, na Palestina, em 2024. Ele compartilha como é a guerra vista de dentro de uma sala de emergência.

Eu estava trabalhando como médico emergencista para Médicos Sem Fronteiras (MSF) na sala de emergência do hospital Al-Aqsa, em Deir Al-Balah, Gaza, Palestina, quando duas meninas foram trazidas, uma com cerca de 7 anos e a outra com 5. A mais velha havia perdido o braço esquerdo na altura do ombro. A mais nova estava coberta de sangue, mas eu não consegui identificar imediatamente qual era o ferimento, então concentrei minha atenção nela. 

A princípio, fiquei esperançoso, porque ela estava deitada de costas e não parecia haver sinais de ferimentos. Pensei que o sangue fosse da irmã. No entanto, ao virá-la, notei que todo o seu lado direito estava aberto. Seus pulmões estavam expostos, cobertos de estilhaços e sujeira, movendo-se rapidamente com sua respiração. 

Eu sabia que não havia cirurgião cardiotorácico no hospital. Mesmo se houvesse, estava ciente de que as chances dela eram mínimas. Tentei estancar o sangramento, tratei o ferimento e a levei até os cirurgiões pediátricos. Quando ela saiu da cirurgia, levei-a para a unidade de terapia intensiva e fiquei com ela, ajustando os medicamentos e monitorando seu estado, esperançoso de que ela se recuperasse. Um de meus colegas tentou me preparar emocionalmente, porque sabia que era improvável que ela sobrevivesse. 

De fato, algumas horas depois, meu colega me acordou. A menina não havia sobrevivido à noite. 

Posteriormente, descobri que ela e a irmã fugiam do norte de Gaza com o pai, a mãe e o irmão, quando um ataque aéreo atingiu o carro deles. A maior parte da família morreu instantaneamente. 

O número de pessoas feridas ou mortas, e a gravidade de seus ferimentos, está além do que qualquer resposta de emergência pode suportar. Nenhum hospital está operando em plena capacidade. Todas as semanas — às vezes todos os dias —, os hospitais recebem dezenas, até centenas, de pacientes em questão de minutos, com ferimentos letais ou que mudam a vida, causados por ataques aéreos israelenses, bombardeios, disparos de artilharia e explosivos de alto impacto, incluindo queimaduras graves e lesões por esmagamento por ficarem presos sob edifícios desabados e amputações. 

Em 2018, enquanto era estudante de medicina em Gaza, testemunhei a Grande Marcha do Retorno, quando protestos realizados na fronteira do enclave foram recebidos com uma chuva de tiros das forças israelenses. Segundo o Ministério da Saúde, mais de 7.900 pessoas foram baleadas com munição real entre março de 2018 e novembro de 2019. Até o final de dezembro de 2019, MSF havia tratado mais de 900 pacientes com ferimentos por arma de fogo. Na época, a equipe da organização enfrentou grandes desafios: a complexidade dos ferimentos, a falta de equipe especializada para tratá-los, a escassez de suprimentos médicos e a ausência de exames adequados para orientar o tratamento das altas taxas de infecção que ocorriam. 

A situação piorou ainda mais desde então. Em comparação com todas as guerras anteriores, a destruição causada por essa foi além das palavras. Em Gaza, sempre enfrentamos desafios por causa da escassez de suprimentos médicos, mas atualmente eles são praticamente inexistentes. Acho que nunca senti um desespero tão profundo, sabendo que podemos salvar vidas, mas não temos os recursos necessários para isso. 

Esforçamo-nos por fazer o que podemos, reconhecendo que nunca é suficiente. Diariamente, somos obrigados a tomar decisões impossíveis e a tratar pacientes que não podemos salvar. 

Além da resposta de emergência, vemos um número alarmante de pessoas com ferimentos, queimaduras e outras lesões que exigem cuidados complexos e de longo prazo. Além de cirurgias de alta complexidade, muitas pessoas necessitam de tratamento para infecções crônicas resistentes a antibióticos. Elas também precisam de fisioterapia, consultas regulares e apoio de saúde mental, além de assistência real. No entanto, mesmo fornecer cadeiras de rodas ou instalações sanitárias torna-se impraticável se as estradas estiverem obstruídas por escombros ou areia. Como as pessoas podem deslocar-se em meio a essa destruição? 

A reabilitação a longo prazo requer infraestruturas, conhecimentos especializados e cuidados coordenados. Contudo, em Gaza, enfrentamos desafios significativos para manter as pessoas vivas. Não existe um sistema de reabilitação operacional. O único centro de próteses de membros na região fechou, e não existe nenhum sistema para encaminhar pacientes de um centro de saúde para um hospital. Os pacientes são, portanto, deixados para viver com lesões incapacitantes que, em muitos casos, poderiam ter sido evitadas. 

Estima-se que mais de 90% da população de Gaza estejam deslocados. O sistema educacional entrou em colapso. É muito preocupante que o fornecimento de água potável, o saneamento e a segurança alimentar estejam se deteriorando. A vida como a conhecemos está destruída em todas as áreas. Além dos ferimentos físicos, há um impacto psicológico imenso. É evidente que a maioria da população de Gaza sofre de estresse agudo, transtorno de estresse pós-traumático e traumas mentais profundos, independentemente de ter sofrido ferimentos físicos ou não. 

Embora as organizações humanitárias estejam envidando esforços, esses não são suficientes. Essa não é apenas uma questão de resposta médica de emergência. Trata-se de sobrevivência. Trata-se de dignidade. Trata-se de valores humanos fundamentais. 

O sofrimento contínuo em Gaza persistirá muito além da cessação das bombas. O bloqueio israelense à Faixa de Gaza tem impacto significativo na vida de muitas pessoas, que enfrentarão uma vida inteira de dificuldades pela falta do tratamento que merecem. É vital que a ajuda humanitária seja desimpedida, abrangente e sustentada enquanto as necessidades persistirem. 

Nossa motivação deriva da compreensão de que nossos pacientes dependem de nós e de que, se desistirmos, eles morrerão. É mais sofrimento do que resiliência, mas, como profissionais de saúde, ignoramos nosso próprio trauma. Quando a guerra terminar, todos teremos de enfrentar a realidade daquilo que vimos e perdemos, e do que é irreversível. 

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