“O que eu testemunhei em Mianmar me tocou como profissional e como ser humano”

Jessa Pontevedra, coordenadora médica de MSF, relata destruição causada pelo terremoto em Mianmar e rede de solidariedade formada pela população

Mesquita Central atingida pelo terremoto que ocorreu em 28 de março em Mianmar. @Lena Pflueger/MSF

Em 28 de março, um terremoto de magnitude 7,7 atingiu a região central de Mianmar. Do epicentro, na cidade de Sagaing, o tremor foi sentido na Tailândia, Bangladesh, China e Laos. Equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) que já estavam no país se mobilizaram imediatamente para chegar às áreas afetadas nas cidades de Sagaing, Mandalay, Naypyitaw e Shan do Sul, para avaliar as necessidades iniciais. Enquanto isso, nossas equipes de emergência se preparavam para chegar a Mianmar o mais rápido possível.

Jessa Pontevedra, coordenadora médica de MSF que estava baseada no Sudeste Asiático, é uma das profissionais da equipe de emergência. Neste relato escrito em 17 de abril, ela compartilha sua experiência na primeira semana em Mianmar.

O que eu testemunhei em Mianmar me tocou como profissional e como ser humano.”

Desembarcamos na cidade de Yangon no meio da noite de 1º de abril e fomos diretamente para o escritório de MSF para receber as instruções. Depois de algumas horas de descanso, partimos na manhã seguinte em uma viagem de seis horas e meia até Naypyitaw, capital de Mianmar, para nos juntarmos à equipe que já havia ido para lá no dia 30 de março. Mas, a cerca de 100 km da cidade, começamos a ver o impacto do terremoto: rachaduras marcavam a estrada, um lembrete claro do alcance do desastre.

Entramos na cidade e fizemos o check-in em um hotel, onde algumas famílias desabrigadas que podiam pagar se refugiaram. À noite, nos reunimos com o restante da equipe de emergência para definir os objetivos para os próximos dias. Como coordenadora médica, meu papel é avaliar a situação da saúde: tanto as condições das instalações médicas quanto as necessidades urgentes das pessoas afetadas.

Um museu de joias transformado em maternidade

Antes do terremoto, Naypyidaw possuía grandes instituições médicas: um hospital com mil leitos, um hospital pediátrico com 500 leitos, um hospital ortopédico com 500 leitos, uma maternidade com 500 leitos e muito mais. No entanto, todos esses hospitais especializados não puderam operar em sua capacidade total devido a danos estruturais, e isso em uma cidade que abriga 1,1 milhão de pessoas.

Um dos exemplos mais marcantes de adaptação foi a realocação de um hospital de obstetrícia e pediátrico com 500 leitos. Pacientes, funcionários e alguns equipamentos foram transferidos para um museu de joias privado que estava desocupado e que não foi afetado pelo terremoto. O proprietário acolheu a maternidade em seu prédio e no terreno. O museu, planejado inicialmente como uma atração turística de alto padrão, se tornou um espaço de atendimento médico de emergência. Dentro dos cômodos, havia fileiras e mais fileiras de camas preparadas para mulheres grávidas prestes a dar à luz.

Um detector de metais na entrada servia agora como ponto de triagem, e no interior mesas foram usadas para consultas pré-natais e pós-natais. Outras salas foram transformadas em enfermarias de emergência, e uma sala de cirurgia já estava realizando cesarianas. A equipe, que também estava deslocada, havia montado barracas para dormir no complexo, assim como as famílias dos pacientes. Um prédio de tijolos nos fundos do complexo foi usado como escritório administrativo e cozinha para a equipe.

Vi muita solidariedade e dedicação

Lá, conheci a superintendente do hospital, que tirou um tempo para falar conosco, apesar da situação desafiadora. A equipe e as famílias dos pacientes estavam dividindo o local, compartilhando refeições, oferecendo doações, apoiando uns aos outros como uma grande comunidade. Todos estavam lidando da melhor forma possível… coletivamente.

Um outro hospital, originalmente com 500 leitos, foi realocado para o outro lado da cidade e agora estava funcionando como um hospital de 32 leitos, sem nenhuma sala de cirurgia. Analisando as necessidades da comunidade, um hospital de 500 leitos se transformando em um hospital de 32 leitos não fazia sentido.

O encontro com o superintendente dessa outra instituição me tocou profundamente. Os profissionais de saúde eram muito dedicados, fazendo o melhor que podiam. O espírito de comunidade em todos os lugares e a união realmente ressoaram em mim, pois sou do Sudeste Asiático, e essa é uma grande parte de nossa cultura – a união em momentos de necessidade. Os profissionais também ficaram gratos pelo fato de MSF estar com eles nessa emergência.

Muitas pessoas desabrigadas em um espaço urbano

Cinco dias depois, deixei Naypyidaw, pegando a antiga rodovia em vez da via expressa. Ao nos aproximarmos da cidade de Mandalay, vimos abrigos improvisados com lonas de plástico em um lado da estrada, abrigando cerca de mil pessoas. Do outro lado, havia prédios em ruínas. Nos dias seguintes, ao circularmos pela cidade para avaliar os hospitais, vimos danos semelhantes: casas destruídas e comunidades em desordem. Muitas pessoas afetadas estavam bastante vulneráveis, sem acesso a água e saneamento, sem o básico para preservar sua dignidade.

Em Mandalay, famílias que decidiram permanecer próximas de suas casas danificadas ou desmoronadas estavam nos portões, quintais ou ao longo da rua – algumas até entraram novamente em suas casas danificadas, se arriscando para conseguir acessar os banheiros. Os hospitais estavam funcionando parcialmente e atendendo os feridos, embora muitas vezes do lado de fora, mal protegidos por simples lonas.

Enquanto avaliávamos como MSF poderia colaborar após o terremoto em Mianmar, nossas equipes já estavam prestando consultas de saúde básicas, primeiros socorros psicológicos às comunidades afetadas e distribuindo itens como kits de higiene, em colaboração com organizações locais. As equipes de logística de MSF estavam trabalhando incansavelmente para restaurar as instalações de água e saneamento, montando latrinas em mosteiros onde muitas famílias deslocadas buscaram refúgio.

Apoio entre comunidades

Com a aproximação da estação das chuvas, os desafios em Mianmar estão aumentando. A situação pode se tornar cada vez mais precária. Se milhares de pessoas permanecerem desabrigadas em áreas urbanas, o risco de surto de doenças aumenta, e responder a essas necessidades será um grande desafio.

O que testemunhei em Naypyidaw me tocou profundamente como profissional de saúde pública, mas o que vi em Mandalay me tocou profundamente como humanitária.”

Por enquanto, as comunidades estão encontrando maneiras de se apoiar. Lembro-me de um casal hospedado no mesmo hotel onde eu estava em Naypyidaw. Era o aniversário do homem naquele dia, mas diante da situação não haveria comemoração. “Também perdemos nossa casa”, ele disse, “mas somos um pouco mais abençoados, por isso queremos retribuir”. E eles fizeram isso distribuindo alimentos, água e itens não alimentares em um dos bairros mais afetados de Naypyidaw.

Também lembro de um médico que conheci. Ele era de uma cidade menos afetada e reuniu um grupo de colegas da área de saúde para montar uma clínica gratuita. Eles rapidamente começaram a receber doações de pessoas do exterior – alimentos, itens não alimentares e muito mais.

Esse espírito de comunidade em Mianmar é poderoso, mas eu me pergunto: quanto tempo isso pode durar?”

Nossas equipes de emergência continuam a trabalhar quase sem parar, avaliando e antecipando as necessidades, apoiando os esforços de socorro sempre que possível, junto com as comunidades que estão envolvidas. A recuperação desse terremoto será longa para as pessoas afetadas. E não importa onde vivam, elas precisam ter acesso à assistência humanitária que salva vidas.

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