Na armadilha de Darfur

A crescente violência e ataques têm restringido a atuação das equipes de Médicos Sem Fronteiras na conturbada região do Sudão

É início de tarde no acampamento de Ramadeqai para deslocados internos na conturbada região de Darfur, no Sudão. Os moradores, que entram nos últimos dias do Ramadã, suam sob o sol de outubro. É possível sentir a letargia no ar.

Cerca de 90 mil deslocados internos vivem nos quatro acampamentos em volta de Zalingei. Os abrigos têm sido seus lares desde que o conflito teve início em Darfur, no começo de 2003. Não houve distribuição de material de abrigos por 18 meses e suas casas feitas de madeira, barro e pano parecem estar caindo aos pedaços.

As pessoas foram para os acampamentos em busca de proteção das forças que os fizeram deixar seus vilarejos. Em vez disso, descobriram que essas mesmas forças em volta dos acampamentos, espalhando medo e fazendo com que houvesse terror constante em seu local de refúgio.

Hoje, junto com o Ministério da Saúde, MSF administra o hospital de 155 leitos em Zalingei, que é gratuito e acessível, em teoria, tanto para os moradores da cidade quanto para os deslocados que vivem nos acampamentos. Mas até esse serviço é cheio de problemas.

"O acampamento é como uma prisão ao ar livre", explica o coordenador médico de MSF Severine Ramon. "As mulheres são estupradas quando saem em busca de lenha, grupos armados rondam os acampamentos à noite espalhando medo entre as pessoas e os homens têm medo de sair do acampamento e andar por 20 minutos para receber atendimento médico no hospital da cidade".

Apesar da preocupação com o acesso, o hospital realiza cerca de duas mil consultas por mês, das quais 30% para crianças com uma combinação de má nutrição associada a outras doenças. Vítimas de violência sexual também são atendidas, embora o número de pacientes tratados pouco provavelmente consiga ilustrar o tamanho do problema.

"Em setembro, nós tratamos seis vítimas de estupro, mas nós tememos que hajam muitas mais que não nos procuram porque têm medo", conta Severine Ramon.

Insegurança

A dificuldade que os pacientes têm em conseguir atendimento médico é parcialmente fruto dos problemas enfrentados pelas agências humanitárias para chegar até eles. Desde o início de 2006, as equipes de MSF têm sido vítimas de mais de 40 incidentes de segurança com gravidade variada, muitos dos quais ocorreram nas estradas supostamente sob controle do governo de Cartum.

A insegurança significa que hoje MSF só pode usar uma estrada de toda Darfur, uma área do tamanho da França. Todos os outros deslocamentos são feitos por helicópteros da ONU ou aviões. Enquanto MSF ainda está realizando grande projetos de saúde em 12 locais na região, os resultado tem sido que muitos programas essenciais, como as clínicas móveis que operam fora da cidade, foram suspensos.

Transferências simples, mas capazes de salvar vidas, também tornaram-se quase impossíveis. Para casos cirúrgicos, por exemplo, até pouco tempo atrás MSF conseguia transferir pacientes de seu centro de saúde em Niertiti para o hospital de Zalingei, localizado a 60 quilômetros de Niertiti, em um veículo de MSF. Depois de uma série de incidentes de segurança na estrada em setembro, o serviço de transferência foi interrompido e agora os pacientes têm que contar com um transporte privado.

"Com o transporte de MSF, essa viagem levava apenas uma hora. Com os caminhões que servem de transporte público, pode levar até dez. Para uma mulher com necessidade urgente de uma cesariana, isso pode ter sérias conseqüências", explicou Severine Ramon.

Alguns programas, como o de Korma no Norte de Darfur, tiveram de ser completamente fechados devido à insegurança, reduzindo consideravelmente o acesso das pessoas à assistência de saúde. Em setembro, uma série de incidentes violentos forçou MSF a se retirar de Kutrum em Jebel Mara em meio a um surto de cólera.

"Nós não temos acesso às áreas rebeldes em Jebel Mara por mais de seis semanas. Nós conseguimos cuidar de 500 casos de cólera antes de sair, mas há cerca de entre 300 e 400 que não conseguimos cuidar", explicou o chefe de missão de MSF Jean-Sebastien Matte.

"Isso significa que essas pessoas podem ter morrido devido à falta de atendimento médico. A cólera pode ser rapidamente tratados, mas se não há como fazer isso, ela mata o paciente rapidamente. Hoje, não temos certeza da taxa de mortalidade, podemos apenas imaginar que seja bastante expressiva".

Desde que o Acordo de Paz de Darfur (APD) foi assinado em maio de 2006 com o apoio do Ocidente, a situação na região indubitavelmente piorou. O número de grupos envolvidos nos confrontos se multiplicou e o conflito entre o governo e os grupos que se opõe ao APD. Isso resulta no aumento da insegurança significa que MSF não tem como monitorar as condições de saúde em grandes áreas de Darfur.

A atmosfera em Darfur se polarizou ainda mais devido às recentes tensões causadas pela ilusão de uma intervenção das forças de paz da ONU. Uma forte retórica de ambos os lados da negociação teve conseqüências no terreno, com o governo de Cartum fortalecendo sua propaganda contra o que denomina como intromissão estrangeira. As ONGs são as primeiras a sentir essa raiva e falsas esperanças surgiram entre grande parte da população.

A tensão ajudou a atar as mãos do trabalho humanitário independente e imparcial.

"Nós temos muito pouco acesso ao Norte de Darfur. Então nem sabemos em que estado vivem as pessoas em algumas áreas, se eles têm acesso à água, saúde ou alimentos. Nem o governo, nem os diferentes grupos rebeldes nos dão o acesso que precisamos; nós somos alvo em todos os cantos. Não há dúvida de que não estamos funcionando como poderíamos", concluiu Jean Sebastien Matte.

As conseqüências para as pessoas em Darfur, elas mesmas vítimas das crescentes tensão e violência, são preocupantes. Poucos na área vêem alguma razão para acreditar que a situação vai melhor em um futuro próximo.

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