MSF pede proteção a profissionais e unidades de saúde em Moçambique

Aumento da violência compromete cada vez mais o acesso a serviços médicos em Cabo Delgado

Em Macomia, as equipes de MSF conseguiram retomar as atividades um ano após ataque. © Marília Gurgel/MSF

À medida que Cabo Delgado, província de Moçambique, enfrenta um aumento alarmante de violência, o acesso à saúde está sendo gravemente comprometido. O conflito no norte de Moçambique já dura quase oito anos, causando um enorme impacto à população, onde mais de 400 mil pessoas estão deslocadas. A violência e a insegurança levaram à redução forçada das atividades médicas e limitam os movimentos de profissionais de saúde e das comunidades nas áreas afetadas.

Médicos Sem Fronteiras (MSF) apela à proteção dos profissionais e das unidades de saúde contra a violência, e à garantia de uma resposta humanitária coordenada nos locais que enfrentam um aumento das necessidades devido à chegada de pessoas deslocadas.

Somente em 2025, 43 mil pessoas foram deslocadas após ataques e incidentes violentos, e mais de 134 mil pessoas foram afetadas pela violência apenas em maio, segundo o relatório do  Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA). Este é o aumento mais significativo da violência desde junho de 2022. Muitos desses episódios recentes ocorreram nos distritos de Macomia, Mocímboa da Praia, Muidumbe e Meluco, e chegaram até a província vizinha Niassa.

Em Macomia, um ataque de um grupo armado em maio de 2024, forçou MSF e outras organizações a suspender suas atividades. A retomada só foi possível um ano depois. E, hoje, apenas um centro de saúde funciona no distrito, em comparação com os sete centros de saúde que funcionavam anteriormente.

“Com o aumento dos deslocamentos, muitas pessoas procuraram refúgio em Macomia, sobrecarregando o único centro de saúde em funcionamento”, diz Emerson Finiose, médico de MSF em Macomia. “Estamos com dificuldades para realizar encaminhamentos médicos. Priorizamos os casos mais graves, o que deixa uma lacuna significativa no atendimento ao restante da comunidade.

A situação em Macomia ilustra a fragilidade do sistema de saúde na província de Cabo Delgado, um padrão que se repete em outros três distritos onde MSF atua: Mocímboa da Praia, Mueda e Palma. Desde o início do conflito, mais de 50% das unidades de saúde da província foram totalmente ou parcialmente destruídas, segundo dados oficiais. A situação se agravou ainda mais com a passagem do ciclone Chido , que atingiu o sul da província no final do ano passado.

Além da destruição, muitas unidades de saúde não funcionam devido à ausência de profissionais; os serviços são frequentemente suspensos ou reduzidos, principalmente em áreas de difícil acesso, e muitas das unidades de saúde ainda em funcionamento não estão devidamente equipadas ou encontram-se distantes demais para serem acessadas com segurança.

Em 2025, MSF foi forçada a suspender atividades cinco vezes devido à insegurança, por no mínimo duas semanas em cada episódio, especialmente em Macomia e Mocímboa da Praia. Isso deixou milhares de pessoas sem acesso à saúde e comprometeu a continuidade dos cuidados aos pacientes.

As equipes de MSF prestam cuidados de saúde básicos, tratamento de HIV e tuberculose, serviços de saúde sexual e reprodutiva, apoio em saúde mental, além de cuidados maternos e pediátricos. Também realizam doações de medicamentos e materiais médicos, além de serviços de água e saneamento. Entre janeiro e maio de 2025, MSF realizou, em média, 18 mil consultas médicas por mês (ambulatoriais e internações), 30 encaminhamentos de pacientes que necessitavam de cuidados especializados e assistiu 740 partos nos quatro distritos onde atuamos.

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As limitações para oferecer cuidados devido ao contexto volátil têm impactado profundamente a comunidade. Isso é notável nos dados médicos dos nossos projetos: em abril, MSF realizou 12.236 consultas ambulatoriais em Mocímboa da Praia. Já em maio, com o aumento dos incidentes, o número caiu drasticamente para 1.951.

O papel essencial de MSF

Fátima Abudo Laíde, promotora de saúde de MSF na comunidade de Malinde, distrito de Mocímboa da Praia. ©Marília Gurgel/MSF

Estamos aqui para apoiar a comunidade, superar o medo e garantir que ninguém fique sem ajuda.”

– Fátima Laíde, promotora de saúde de MSF no distrito de Mocímboa da Praia

Uma parte crucial da resposta de MSF é realizada pelas equipes de promoção de saúde e pelos agentes comunitários. Eles trabalham junto às comunidades para partilhar informações essenciais e promover práticas saudáveis, como a lavagem das mãos e o tratamento da água para prevenir doenças transmitidas pela água. Equipes de MSF também oferecem treinamentos a alguns dos agentes comunitários para identificar e tratar doenças comuns, como a malária, uma das principais causas de morte na região, e encaminhar pacientes que precisem de cuidados especializados.

“Compartilhar informações de saúde é extremamente importante em tempos de conflito, quando muitas pessoas estão psicologicamente afetadas”, diz Fátima Abudo Laíde, promotora de saúde de MSF na comunidade de Malinde, distrito de Mocímboa da Praia.

“Às vezes, uma pessoa fica doente, mas não consegue se abrir, porque emocionalmente não está bem. Eu ajudo a pessoa a buscar tratamento no centro de saúde mais próximo, para que não fique isolada. Já enfrentei situações difíceis, como acompanhar uma mulher em trabalho de parto às três da manhã, mesmo com medo. Mas estamos aqui para apoiar a comunidade, superar o medo e garantir que ninguém fique sem ajuda”, conclui Fátima.

Além de sofrerem de estresse psicológico agudo e traumas, alguns pacientes são forçados a interromper seus tratamentos. Isso é especialmente preocupante no caso de mulheres grávidas, idosos, pessoas com deficiência e pessoas com doenças crônicas ou vivendo com HIV .

“Lembro de um caso na comunidade de Mbau, onde uma mulher grávida entrou em trabalho de parto tarde da noite”, conta Sunga Antônio, obstetriz de MSF no Hospital Rural de Mocímboa da Praia. “A promotora de saúde nos chamou para ajudar, mas era tarde e arriscado demais evacuá-la. Ela deu à luz na comunidade, e só conseguimos levá-la ao hospital pela manhã. Infelizmente, ela entrou em coma, provavelmente por complicações do parto, pois estava grávida de gêmeos. Se o centro de saúde local estivesse funcionando, ela poderia ter recebido cuidados a tempo e tido um parto seguro.”

Crise humanitária e apelo urgente

Os cortes recentes na ajuda humanitária continuam a agravar a situação em Cabo Delgado. A escassez de financiamento é um reflexo de um problema global mais amplo: a capacidade coletiva de responder às necessidades das populações está colapsando em todos os setores e organizações.

Emerson Finiose, médico de MSF na cidade de Macomia desde 2024. ©Marília Gurgel/MSF

“O conflito em Cabo Delgado tornou-se uma grave crise humanitária,” afirma Finiose. “Afeta todos os aspetos da vida, especialmente a saúde e a educação, e retira a dignidade das pessoas. Precisamos de acesso seguro às comunidades em vulnerabilidade e do apoio de outros atores para podermos ajudar a lidar com as consequências desta crise.

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