MSF encerra projeto na região da Ilha do Marajó, no Pará

Trabalho em Portel deixa legado na atenção a sobreviventes de violência sexual, com prioridade para acolhimento, cuidados de saúde e psicossociais humanizados

Em Portel, na ilha do Marajó, MSF atuou para fortalecer o acolhimento a sobreviventes de violência sexual, unindo serviços de saúde, capacitação de profissionais e a construção de uma rede de cuidado. ©Diego Baravelli/MSF

Equipes de Médicos Sem Fronteiras (MSF) percorreram longos caminhos por rios e trilhas do município de Portel, no Pará, para levar atendimento a comunidades de áreas remotas, onde a presença de um médico era muito rara. O intervalo entre visitas poderia chegar a anos, e a necessidade de melhorar o acesso à saúde dessa população da região da ilha do Marajó foi rapidamente percebida pelos profissionais da organização que estiveram lá em 2021, durante a pandemia de COVID-19. 

Dois anos depois, em 2023, MSF pôde regressar a Portel, abrindo um projeto na cidade. O trabalho realizado nos anos seguintes priorizou o atendimento integral de saúde em comunidades em situações de vulnerabilidade, com foco especial em populações ribeirinhas, quilombolas e das zonas rurais. 

Em parceria com as autoridades de saúde municipais, as ações promoveram uma melhora gradual nas estruturas de saúde do município, dando prioridade àquelas que recebem pacientes de áreas mais remotas. Paralelamente, foram colocadas em operação clínicas móveis que se deslocavam de barco para localidades distantes da área urbana de Portel. Durante todo o projeto, foram 227 clínicas móveis que realizaram o atendimento de 3.249 pessoas. Metade destes atendimentos foram prestados a pessoas menores de 15 anos.

Outro eixo da atuação foi a assistência em saúde mental, que era desconhecida para muitos pacientes: 90% das pessoas provenientes da área rural que receberam este tipo de atendimento nunca haviam tido contato com o serviço anteriormente. O maior volume de pacientes foi atendido em sessões em grupo, que totalizaram 129. Mas também foram realizados 130 atendimentos individuais. 

Ao longo do projeto houve uma melhora progressiva nos recursos para atendimento médico, com aumento do número de profissionais da rede pública. Embora a situação não seja ainda ideal, foram contratados mais médicos e as estruturas de saúde também foram aprimoradas. 

Com a melhora no atendimento geral de saúde, as atividades puderam ficar mais centradas em um objetivo que existia desde o início do projeto, que era o de endereçar a questão da violência sexual na região. O problema pôde ganhar centralidade depois que a equipe já havia tido tempo de compreender melhor como era a dinâmica local em relação ao tema. 

“A leitura que MSF foi fazendo era de que a abordagem era muito focada na judicialização dos casos”, explica Cristal de Oliveira, coordenadora do projeto de MSF em Portel. “A atenção não era para a pessoa sobrevivente, mas sim para o agressor. O caminho sempre era através da judicialização, ou seja, fazer uma denúncia sobre o agressor, ir atrás do agressor”, lembra ela.  

O desafio, então, era sair dessa abordagem e adotar procedimentos que estivessem centrados no cuidado às pessoas sobreviventes, com a disponibilização de assistência adequada e multidisciplinar, evitando revitimização e garantindo privacidade. 

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A estratégia inicial foi dialogar com atores locais relevantes, como o Poder Judiciário e o Ministério Público, para apresentar as melhores práticas de atenção às pessoas sobreviventes. “Trouxemos dados e fizemos uma leitura em conjunto com eles, e a partir disso conseguimos mudar a lógica dessa abordagem”, relembra Cristal. 

Para ser implantada na prática, entretanto, a abordagem necessitava ser conhecida e assimilada pelas pessoas envolvidas diretamente no atendimento a esses pacientes, o que extrapolava muito os profissionais de saúde. Por isso, além deles, assistentes sociais, educadores, conselheiros tutelares, policiais e funcionários administrativos do hospital e de Unidades Básicas de Saúde (UBS) também receberam treinamentos específicos. 

O objetivo foi permitir que, independentemente de qual organismo ou instituição seja procurado primeiro após um episódio de violência sexual, qualquer funcionário esteja apto a fornecer um atendimento humanizado e acolhedor.  

No total, MSF capacitou 458 profissionais de saúde e de outras áreas, contemplando oito Unidades Básicas de Saúde (UBS) e um hospital. “Todo mundo recebeu treinamento, do nosso porteiro à pessoa de serviços gerais”, explica Luana dos Santos, enfermeira da UBS de Portelinha. “Até porque o acolhimento acontece a partir da portaria, né?”. 

Como parte do trabalho, foram inauguradas salas de acolhimento a sobreviventes de violência sexual. ©Diego Baravelli/MSF

Para estruturar melhor esse acolhimento, também foram criadas duas salas projetadas especialmente para receber sobreviventes de violência sexual. As estruturas estão no Hospital Geral de Portel, na área urbana, e na Unidade Básica de Saúde Portelinha, que atende muitos pacientes da zona rural. 

Outro avanço importante foi a disponibilização em Portel da profilaxia pós-exposição (PEP), para adultos e crianças, que consiste no uso de medicamentos antiretrovirais para reduzir o risco de infecções sexualmente transmissíveis. A localidade é um dos poucos municípios do interior do Pará a descentralizar o uso da PEP, tornando-a mais acessível. 

Treinamento para Agentes Comunitários de Saúde na Unidade Básica de Saúde Pinho. ©Diego Baravelli/MSF

Do ponto de vista institucional, MSF contribuiu ativamente com a criação de uma rede multidisciplinar composta por diversos órgãos que atuam diretamente com esta temática, como a Secretaria Municipal de Saúde, o Conselho Tutelar, a Polícia Civil e o Ministério Público. Com isso, foi possível estabelecer um fluxo comum para o atendimento integral e humanizado às pessoas sobreviventes. A prioridade é o encaminhamento para a rede de saúde, para que a pessoa receba os cuidados médicos e psicossociais necessários, com privacidade e confidencialidade. 

Outros legados foram o Comitê de Enfrentamento à Violência Sexual criado pela Secretaria de Saúde, e uma lei que institui a Política Municipal de Atendimento a Crianças e Adolescentes Vítimas Sobreviventes de Crimes Contra a Dignidade Sexual e Outros Delitos Graves, sancionada no final de junho de 2025.  

O projeto de MSF, que encerrou as atividades médicas em junho deste ano, deixa também o aprendizado de que muitas vezes é preciso ter paciência para dialogar e ser compreendido para poder modificar a realidade. Às vezes é preciso navegar percursos longos antes de chegar aonde se deseja, tal como faz a população local. 

Se a gente não souber navegar nesse sistema, a gente não consegue transmitir uma mensagem. Por isso acho que a experiência que MSF conseguiu absorver nestes últimos anos em parceria com as autoridades de saúde locais foi muito relevante”, sintetiza Cristal. 

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