Médicos sírios arriscam tudo para salvar vidas

A constante violência e a escassez de profissionais, suprimentos e equipamentos médicos tornam o trabalho das equipes cada vez mais difícil, assim com o acesso a cuidados de saúde

Médicos sírios arriscam tudo para salvar vidas

Por Mohammad Ghannam/MSF

Os ataques aéreos começaram com poucos minutos de intervalo naquela manhã e atingiram um grande hospital apoiado pela organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) na província de Idlib, na Síria. Das 25 pessoas que morreram, cinco eram crianças. Entre os adultos mortos estão um médico, um coordenador de enfermagem, cinco enfermeiros e um técnico de laboratório. Os ataques foram perpetrados por forças leais ao governo sírio.

“Algumas das vítimas eram pacientes que estavam em seus leitos, outros estavam visitando parentes”, lembra o cirurgião ortopédico de 55 anos que trabalhou no hospital até a instalação ser atingida por uma série de ataques consecutivos – chamada de duplo golpe, tática que busca fazer o máximo de vítimas bombardeando um alvo e repetindo a ação assim que as equipes de resgate chegam a ele – em 15 de fevereiro de 2016. “Nosso hospital foi reduzido a escombros, da mesma forma que meu coração”, disse ele sobre a instalação apoiada por MSF. Desde então, ele relembra o momento do ataque todos os dias. “Eu só sobrevivi porque estava 15 minutos atrasado para o trabalho”, ele disse. “Eu deveria ter chegado às 9h. O primeiro ataque aconteceu às 9h02. Equipes de resgate começaram a chegar para tentar tirar os sobreviventes dos escombros. Porém, o ataque seguinte aconteceu às 9h05. Depois, novamente às 9h45 e às 9h50.”

Enquanto um inferno acontecia, o cirurgião correu junto com voluntários de resgate para evacuar os sobreviventes que conseguissem achar para a instalação médica mais próxima dali – o Hospital Central de Maaret al-Numan, cidade do noroeste da Síria. Mas o pesadelo ainda não tinha acabado. “Forças aéreas sírias lançaram dois mísseis no hospital central, um às 11h e outro às 11h05”, lembrou o cirurgião.

O lugar mais perigoso

Diversos hospitais e instalações médicas foram danificados ou destruídos desde a eclosão da guerra civil, em 2011, especialmente por ataques aéreos, o que deixou centenas de milhares de pessoas sem acesso a cuidados médicos adequados.

Além disso, centenas de médicos e outros profissionais de saúde foram mortos, e muitos outros detidos e torturados por ousarem prestar assistência a pessoas em território “inimigo”. Milhares de profissionais de saúde se juntaram à corrente humana de refugiados que fogem da Síria nos últimos anos, por saberem que, caso contrário, podem vir a se tornar os próximos alvos.

Outros, porém, ficaram para trás, por temerem que, se fugirem, civis feridos ou doentes que se encontram retidos no país tivessem ainda menos chance de sobreviver.

Contudo, devido à escassez de profissionais, os médicos que ainda trabalham na Síria enfrentam um volume de trabalho extenso. “Há dias em que temos que tratar mais de 100 pessoas de uma vez só. Vemos pacientes deitados no chão e gritando de dor, mas simplesmente não podemos chegar a todo mundo tão rapidamente”, disse o dr. Ahmad, outro cirurgião que trabalha em um hospital apoiado por MSF próximo à cidade de Jisr al-Shughour, que não fica distante da fronteira com a Turquia. “Enfrentamos dias incrivelmente difíceis”, lembra, enquanto descreve os atentados de artilharia e os ataques aéreos contra a instalação.

“É como se as forças aéreas da Síria e seus aliados estivessem procurando maximizar o número de civis mortos; isso fica claro quando mercados, padarias, praças e hospitais são atacados”, ele disse. “Na Síria, os lugares mais perigosos para se estar são hospitais ou ambulâncias.” De acordo com o Direito Internacional Humanitário, hospitais e ambulâncias têm um status especial de proteção. Na Síria, no entanto, agentes de saúde tiveram que fazer grandes esforços para esconder suas ambulâncias e instalações médicas – porque sabem que são alvos primários para ataques, caso estejam claramente demarcados.

“Nós escondemos nossos hospitais e cobrimos nossas ambulâncias com lama para disfarçá-las”, diz o dr. Ahmed, que é cirurgião geral e foi treinado na Universidade de Aleppo. Hospitais e centros médicos são frequentemente ocultados, já que suas equipes buscam, a todo custo, evitar ataques. “O prédio que abriga este hospital era uma fábrica de queijo, mas o transformamos em uma instalação em total funcionamento. As condições de trabalho não são ideais, mas estamos fazendo o nosso melhor”, disse o dr. Ahmed. Outras instalações médicas também foram estruturadas em fazendas de avicultura abandonadas ou prédios de escolas vazios.

“Nós, médicos, percebemos que, na Síria, não podemos trabalhar mais em hospitais identificados e em prédios normais. É perigoso demais. Qualquer prédio que pareça minimamente com um hospital será atingido”, ele disse. “Obviamente, isso significa que nossos pacientes não estão recebendo os cuidados de qualidade de que precisam, porque esses prédios não foram feitos para abrigar hospitais. Além disso, carecemos de muitos equipamentos essenciais.” Ainda assim, muitos dos pacientes do dr. Ahmad não sobreviveriam se precisassem esperar para serem transferidos para a Turquia através da fronteira, que está, em grande parte, fechada. Isso significa que, para algumas pessoas – especialmente os que têm ferimentos de guerra –, a viagem pode ser demorada demais.

Apesar das condições sombrias em que ele e seus colegas trabalham, o dr. Admad acredita que deve permanecer na Síria. “Nós nunca vamos sair daqui”, diz ele.

Hospitais móveis, quartos de pânico

O dr. Abdallah, um médico de laboratório, contou que enquanto continuava trabalhando na Síria, sua esposa, sua filha pequena e seus dois filhos estavam vivendo em Gaziantep, na cidade turca da fronteira, onde poderiam estar a salvo. “Mas como eles se preocupam com o que pode acontecer comigo, vivem constantemente com medo e ansiedade. Eles sabem que ser médico na Síria é quase suicídio”, diz, acrescentando que nem sempre é tão fácil explicar à sua família as razões que o levam a continuar no país – especialmente porque suas preocupações não são, de forma alguma, injustificadas.

O dr. Abdallah, que geriu um hospital apoiado por MSF que leva o nome da cidade de Bagdá, capital do Iraque, também enfrentou a morte de perto. “Nosso hospital foi bombardeado no dia 3 de novembro”, disse ele. “Nosso logístico, que se chamava Emad Zeitoun, foi morto enquanto tentava sair do quarto de pânico”, contou ele, descrevendo a instalação improvisada de 15 metros quadrados, estruturada no porão do hospital no qual equipes e pacientes se escondiam durante os ataques. O ataque aconteceu às onze da noite, de acordo com o dr. Abdallah, no mesmo dia em que dois hospitais da zona rural de Aleppo haviam sido atacados. “Foi um dia cinza e obscuro para os serviços de cuidados de saúde de Aleppo”, ele disse.

Quando foi atingida, a instalação trabalhava duramente, especialmente para atender às vítimas de bombas que precisavam de amputações ou outros tratamentos para ferimentos críticos. De fato, as equipes tinham tanto por fazer que eram regularmente forçadas a encaminhar casos não emergenciais a centros de saúde próximos à fronteira com a Turquia. Como medida de segurança, as equipes do hospital cobriram o prédio com uma barreira de dois metros de altura. Elas também garantiam que ninguém filmasse a instalação, de modo que sua localização exata não fosse descoberta. Contudo, o local também foi atingido. Um ataque aconteceu e, minutos depois dele, outro.

“Os que conseguiam andar foram embora logo depois do primeiro ataque; nós sabíamos que outro ataque era algo iminente. Os outros se reuniram no quarto do pânico. Éramos 50 quando o segundo míssil atingiu o prédio dez minutos depois. Três andares foram imediatamente destruídos, um caindo em cima do outro, como um bolo de camadas. Os ataques também deixaram um rombo no teto do nosso abrigo. Todos escalaram para sair por ele”, contou o dr. Abdallah.

Mesmo tendo sobrevivido à destruição do hospital em que trabalhava, o médico procura, agora, um novo lugar para poder voltar à atividade. “Não vamos deixar de cumprir o nosso dever humanitário. Nós, como médicos e sírios, não podemos desistir do nosso povo. Eu não culpo ninguém que partiu, tanto para trabalhar na fronteira com a Turquia ou na Europa. Mas, se todos nós fôssemos embora, quem ajudaria os que ficam para trás e não têm a quem recorrer?”

Ataques quase diários

A guerra na Síria matou mais de 400 mil pessoas e deixou centenas de milhares de feridos. Muitas resoluções da ONU foram promulgadas para condenar os ataques a hospitais na Síria – ainda que ataques a instalações médicas tenham sido completamente negados ou, na melhor das hipóteses, classificados como “enganos”. Para as equipes médicas locais, todas as dificuldades são pequenas em comparação ao constante perigo causado por ataques aéreos e outros tipos de violência.

De acordo com a Sociedade Médica Sírio-Americana (SAMS, na sigla em inglês), houve 143 ataques a instalações e profissionais de saúde na Síria nos últimos 144 dias. Isso significa que a cada 17 horas uma instalação de cuidados médicos foi atacada, e, a cada 60 horas, um profissional de saúde foi atingido. O dr. Abd, um cirurgião que agora coordena o diretório de saúde na província de oposição de Idlib, concordou com seus colegas que a falta de profissionais e equipamentos torna o trabalho muito difícil. Contudo, é da segurança contra ataques aéreos e outros atentados que os médicos sírios mais precisam. “Se precisarmos de insulina, podemos conseguir com ONGs como MSF”, disse o dr. Abd. “Mas quem pode nos proteger dos ataques?”

 

Informamos que não estamos recebendo doações restritas para a crise na Síria neste momento, devido à instabilidade do contexto, que torna nossa atuação vulnerável. As pessoas interessadas em ajudar essa e outras emergências podem fazer uma doação para o Fundo de Emergência de Médicos Sem Fronteiras (MSF). Esse fundo dispõe de recursos para que MSF possa agir imediatamente quando uma crise surge, permitindo uma resposta rápida em situações em que a agilidade de nossas atividades é fundamental para salvar vidas, como em contextos que envolvem epidemias, desastres naturais e conflitos armados – por exemplo, a guerra civil síria.

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