Médicos Sem Fronteiras denuncia retrocesso em direitos de participantes de pesquisa clínica no Brasil

Congresso derruba veto presidencial e restringe obrigatoriedade de empresa fornecer medicamentos

Uma decisão tomada no mês passado pelo Congresso brasileiro representa um enorme retrocesso para os participantes de pesquisas clínicas, limitando seu direito de receber gratuitamente os medicamentos desenvolvidos a partir dos estudos aos quais eles se submeteram.

Esse direito foi limitado pela nova lei de pesquisas em seres humanos aprovada no ano passado, que restringiu o tempo de fornecimento do medicamento a um período de no máximo cinco anos após a sua comercialização. Na época, Médicos Sem Fronteiras (MSF) emitiu uma nota solicitando que esse dispositivo fosse vetado, e o presidente Luiz Inácio Lula da Silva concordou com o entendimento de que a limitação da garantia de acesso pós-estudo contraria o interesse público e fere os direitos do participante da pesquisa.

Infelizmente, no final do mês passado o Congresso derrubou o veto presidencial.

“A derrubada do veto foi um grave retrocesso, principalmente se consideramos que o Brasil estava na vanguarda deste tema, com uma das legislações mais avançadas do mundo”, lamentou a coordenadora para as Américas de MSF Acesso, Rachel Soeiro. “Não podemos nos esquecer de que as pesquisas só são possíveis porque pessoas se dispõem a doar seu próprio corpo, contribuindo para o avanço da ciência e da saúde. Não faz nenhum sentido que alguém que colaborou para o desenvolvimento de um medicamento corra o risco de ficar sem acesso a ele”, explicou ela, que comanda a divisão regional do braço de Médicos Sem Fronteiras dedicado a ampliar o acesso a medicamentos e outras tecnologias médicas.

Antes que um novo medicamento seja aprovado para uso humano, ele deve passar por processos rigorosos de pesquisas que requerem a participação de voluntários. No entanto, muitas vezes os resultados dessas pesquisas não são revertidos em ganhos para o público em geral, e nem sequer para os participantes que contribuíram diretamente para o desenvolvimento do medicamento.

O Brasil é pioneiro na garantia de direitos de participantes de pesquisas em seres humanos, também chamadas de pesquisas clínicas ou estudos clínicos. Até recentemente, após a conclusão da pesquisa, os responsáveis pela realização do estudo eram obrigados a fornecer o medicamento gratuitamente aos participantes por tempo indeterminado, enquanto essa fosse a melhor opção de tratamento disponível ao paciente.

Apenas no ano passado, foram aprovados 70 requerimentos para o fornecimento de medicamento pós-estudo, incluindo medicamentos para diabetes, diversos tipos de cânceres, doenças raras e autoimunes, entre outros, de acordo com relatório da Coordenação de Pesquisas Clínicas da ANVISA.

Não por acaso, a nova lei teve origem em uma demanda da Interfarma, associação que representa no Brasil as maiores empresas farmacêuticas multinacionais. A indústria farmacêutica é a principal interessada na restrição dos direitos dos participantes de pesquisas clínicas com o discurso de que tal medida atrairia mais pesquisas para o Brasil.

Além de limitar o prazo de fornecimento do medicamento a até no máximo cinco anos após sua disponibilização comercial no país, a nova lei delega a decisão sobre o acesso ao pesquisador e patrocinador da pesquisa. “Isso é um evidente conflito de interesses, que põe em risco o direito do participante”, alerta a coordenadora regional de MSF Acesso.

O dispositivo legal segue para regulamentação pelo Ministério da Saúde. Mesmo que nesse momento o texto da lei não possa ser modificado, ainda é possível que a regulamentação estabeleça critérios mais favoráveis aos participantes da pesquisa, como assegurar medidas que reduzam o conflito de interesses. “Uma melhora possível seria estabelecer um mecanismo independente de revisão nos casos em que o pesquisador ou patrocinador entenda que o participante não se enquadra nas condições estabelecidas para receber o medicamento após a conclusão da pesquisa”, explica Soeiro.

Mesmo que neste momento seja inevitável que a lei entre em vigor, a limitação do acesso pós-estudo é um recuo na garantia dos participantes de pesquisas clínicas e, portanto, uma violação do princípio de proibição de retrocesso presente na Constituição Federal.

A lei também vai na direção oposta de normativas internacionais das quais o Brasil é signatário. Um exemplo é a Declaração de Helsinque, que instituiu o princípio da beneficência, determinando que os benefícios da pesquisa têm de ser superiores aos riscos ao sujeito de pesquisa e que seja continuada a oferta de medicamentos para os sujeitos de pesquisa, entre outras obrigatoriedades. A Declaração de Helsinque, da qual o Brasil é um histórico defensor, tem caráter universal. Portanto seus princípios têm de ser aplicados a todos os países do mundo, sem distinção.

Além disso, o direito de “desfrutar dos benefícios do progresso científico e suas aplicações” é um direito humano estipulado no artigo 15 do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que entrou em vigor em 1976 e do qual o Brasil também é signatário.

Da mesma forma, a referida restrição do direito de acesso pós-ensaio clínico vai na direção contrária dos pressupostos do recém-aprovado Acordo sobre Preparação, Prevenção e Respostas a Pandemias no âmbito da Organização Mundial de Saúde, que visa garantir o acesso pós-ensaio não somente para os participantes da pesquisa clínica, mas também para a comunidade em risco.

“É preciso deixar claro que participantes de pesquisas clínicas não são cobaias humanas e devem ter seus direitos garantidos acima dos interesses econômicos dos financiadores das pesquisas”, concluiu ela.

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