Médico relata emergência dentro de hospital apoiado por MSF durante recente bombardeio na Síria

Após bombardeio em praça pública, 128 vítimas foram encaminhadas a hospital

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Na medida em que a violência continua aumentando, o Dr. N, diretor de um hospital apoiado pela organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) na periferia da região sitiada do leste de Ghouta, próximo de Damasco, descreve a resposta médica aos terríveis bombardeios ocorridos em 23 de janeiro em uma praça lotada.

“Entre 200 e 250 pessoas estavam reunidas na praça pública quando um avião-caça bombardeou o local. Imediatamente, ambulâncias foram enviadas à região para evacuar os feridos. A primeira leva de vítimas chegou ao hospital alguns minutos depois: 20 corpos e 15 feridos. A triagem teve início logo em seguida e a prioridade foi dada às pessoas que apresentavam ferimentos graves, com risco de morte. Aqueles que precisavam de cirurgia urgente foram encaminhados para o centro cirúrgico, na medida em que punções pleurais, controle de hemorragia e estabilização óssea foram realizados na área de triagem, nos poucos leitos disponíveis. Os paramédicos corriam e traziam mais pessoas feridas, o que me fez perceber que uma catástrofe estava acontecendo. Não era o bombardeio de rotina a que estávamos acostumados.

Enquanto as ambulâncias enfrentavam dificuldades para evacuar os mortos e feridos, a área foi novamente atingida, causando mais ferimentos, até mesmo entre os paramédicos. Felizmente, os ferimentos deles não eram graves. Mas uma ambulância foi atingida e totalmente destruída; em seguida, mais uma fora danificada. Nós podíamos ouvir as explosões e o som dos aviões-caça. Eu não conseguia parar de pensar na possibilidade de um ataque ao hospital, uma vez que isso já aconteceu e, na ocasião, perdemos dois de nossos colegas.

Nossa equipe médica apresentava um misto de dor e medo, principalmente depois que começaram a reconhecer membros de suas famílias e amigos entre os mortos e feridos. A chegada de pessoas procurando por seus familiares gerou um clima de choque e pânico no hospital. Nós continuamos trabalhando, tentando salvar tantas vidas quantas podíamos.

Em nosso hospital, como na maioria dos hospitais na região, faltam equipamentos básicos e insumos médicos e temos capacidade limitada para responder a esse tipo de emergência, tanto em termos de espaço quanto de leitos. No entanto, somos a instalação médica mais próxima da região atacada. Temos apenas uma sala de tratamento com equipamentos básicos para o monitoramento de órgãos vitais. A única máquina funciona apenas quando não falta energia elétrica, e é raro que tenhamos energia. Não temos equipamento respiratório especializado, então, um membro da equipe médica treinado ajudou os pacientes a respiraram por meio da pressão regular sobre uma máscara de ressuscitação. Estamos ficando sem a maioria dos produtos de esterilização e anestesia e as cirurgias foram realizadas de maneira pouco convencional devido à falta desses materiais. Estávamos usando retalhos esterilizados, mas não absorventes, para fazermos curativos. Acho que nosso maior problema foi a falta de bolsa de sangue e perfusões, dois itens essenciais para salvar vidas.

Entre os feridos, havia homens, mulheres e crianças. Os ferimentos variavam de superficiais a muito graves. Os mais deprimentes eram as lesões nos nervos. Quando o cérebro é atingido por um estilhaço, não há muito o que possamos fazer. Não há neurocirurgiões por toda a região e as ferramentas para conduzir uma cirurgia no cérebro simplesmente não estão disponíveis. Entre os casos mais dolorosos para nós estão as crianças, quando temos de amputar seus membros para salvar suas vidas. Decisões difíceis como essas são uma verdadeira provação para médicos que dispõem de tão poucas alternativas.

O resultado final foi bastante pesado: recebemos 128 vítimas. Conseguimos salvar as vidas de 60 pessoas, mas 68 dos nossos pacientes morreram.

Em apenas um dia, usamos boa parte de nosso estoque médico, tentando responder à emergência. Usamos quase 80% de nosso estoque médico e cirúrgico consumível, bem como boa parte de nosso estoque de cateteres venosos. Atualmente, estamos enfrentando dificuldades para compensar a falta de recursos. É praticamente uma missão impossível por causa dos bloqueios e estradas bloqueadas. Se tivermos sorte, conseguiremos, mas o processo vai levar um longo tempo e um esforço tremendo. O mesmo se aplica às doações. Quase não conseguimos receber doações por causa do cerco. Alguns hospitais da região dividiram conosco parte de seu estoque limitado, mas não há suficiente para distribuir. É difícil imaginar o que faremos caso uma emergência semelhante aconteça novamente.

O mundo está assistindo a isso há anos. A situação médica, e as condições de vida de forma geral, estão além de todos os alertas vermelhos e alarmes que temos soado em vão por muito tempo.”

Durante os últimos quatro meses, equipes de MSF fora da Síria têm estado em contato diário ou semanal com a equipe médica dos hospitais e com a equipe de paramédicos apoiadas pela organização na região sitiada do leste de Ghouta na medida em que os bombardeios se intensificaram e, como consequência, as necessidades a que estão batalhando para atender também.

Por meio do programa de suporte médico de emergência, que oferece apoio a 100 hospitais e instalações médicas na Síria, principalmente em regiões sitiadas, MSF está provendo suprimentos para manter cuidados de saúde estáveis às vítimas. No entanto, repetidos ataques causam ferimentos massivos e uma escassez de suprimentos difícil de compensar, apesar de todas as tentativas.

Dois paramédicos que atuaram no resgate e encaminhamento de vítimas durante os bombardeios relataram sua experiência. Confira aqui.
 

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