Mantendo os cuidados de saúde em meio a extrema violência e incerteza no Haiti

Coordenador de projeto de MSF no Haiti, Stéphane Doyon, responde a quatro questões sobre o conturbado contexto no país

Sobrevivendo à violência

O assassinato do presidente haitiano Jovenel Moïse, no dia 7 de julho, em Porto Príncipe, capital do Haiti, chamou a atenção mundial para a atual instabilidade política do país que já estava em um estado de crise profunda há muitos meses. Stéphane Doyon, coordenador de projeto de MSF no Haiti, descreve a deterioração da situação humanitária e o extraordinário nível de violência que está ocorrendo no país.

Qual é a atual situação no Haiti?

Para descrever a vida cotidiana, você deve usar o vocabulário da guerra. A capital Porto Príncipe é dividida por várias linhas de frente. Bairros inteiros estão sob o controle de grupos armados com territórios em constante mudança. Em áreas densas e empobrecidas, as ruas têm barricadas e, em algumas áreas, há atiradores de elite que disparam à distância. Os confrontos entre gangues forçaram milhares de moradores a deixar alguns bairros. Em outros, como o Cité Soleil, as pessoas foram sitiadas pelos combates. A ONU estima que 18 mil pessoas estão deslocadas, acomodadas com parentes ou em locais inadequados, tais como escolas e igrejas. Este é um fenômeno novo, com a maioria delas fugindo nas últimas semanas à medida que os combates se intensificam. As principais rotas de acesso a Porto Príncipe são controladas por gangues, e entrar ou sair da cidade se tornou complicado. Além dos combates, há um nível muito alto de criminalidade, com roubos, sequestros e extorsões.


 
O que MSF está fazendo no país?

Neste contexto de turbulência política, há muitas vítimas de violência, especialmente pessoas feridas. Em nosso hospital de trauma de Tabarre, na capital do país, MSF já prestou atendimento a mais de 600 pessoas feridas desde o início do ano. A maioria delas são dos distritos de Martissant, Cité Soleil, Croix des Bouquets ou Bel Air, que são os locais de confrontos armados mais graves. Desde abril, lidamos com várias ondas de feridos, o que nos levou a aumentar nossa capacidade de hospitalização. Houve dias em que nossas equipes receberam até 20 pacientes. Em média, mais de 60% de nossos pacientes traumatizados são vítimas de ferimentos à bala ou facadas. Além disso, continuamos a tratar as vítimas de violência sexual e baseada em gênero em Porto Príncipe e Gonaïves.


 

Como as atividades de MSF são afetadas pelo atual contexto?

Embora o Haiti seja assolado pela violência por muito tempo, a situação de insegurança tem se agravado nos últimos anos. As instalações de saúde não são mais poupadas, e nossas atividades médicas foram interrompidas por uma sequência de incidentes críticos.  

Em fevereiro, um hospital de MSF dedicado ao tratamento de queimaduras graves no distrito de Drouillard teve que ser fechado porque o local estava literalmente cercado por confrontos. Os cerca de 20 pacientes ainda no hospital tiveram que ser transferidos, e o hospital ainda não foi reaberto. Somente mantivemos lá um posto médico avançado para poder estabilizar e encaminhar os feridos ou vítimas de queimaduras. No mês passado, uma explosão de violência no bairro Martissant colocou em risco os profissionais do centro de emergência de MSF. Por vários dias, a equipe médica teve que cuidar dos feridos enquanto se protegia de balas perdidas, e uma de nossas ambulâncias foi roubada. No dia 26 de junho, a instalação foi alvo de disparos e finalmente foi evacuada para não expor ainda mais os pacientes e as nossas equipes.

Além desses episódios extremos, a violência cotidiana é o que ameaça a todos. Quando saímos às ruas, nossas equipes de saúde, assim como a população, vivem com medo de balas perdidas ou roubos. Um profissional de MSF que trabalhava em Tabarre foi assassinado no dia 25 de maio por homens armados depois de ter terminado seu dia no hospital enquanto estava a caminho de casa.


 

Quais são os efeitos sobre o sistema de saúde?

Este estado permanente de insegurança limita o acesso das pessoas aos cuidados de saúde. O sistema de saúde já é extremamente desigual, com saúde privada disponível apenas para aqueles que podem pagar, enquanto as unidades de saúde públicas carecem de recursos essenciais.

Neste contexto, manter as atividades médicas é um enorme desafio. Os profissionais e os pacientes precisam ser capazes de chegar às instalações de saúde e retornar com segurança, mas não há garantia de que possam. Em um momento em que MSF deveria expandir suas atividades para atender às crescentes necessidades médicas da população, incluindo o aumento de casos de COVID-19, estamos enfrentando dificuldades para manter nossas instalações abertas.

É urgentemente necessário compreender que o Haiti está mergulhado em uma situação de violência e insegurança total, aliada a uma grande crise de saúde. O assassinato do presidente agrava a incerteza em um país que parece estar à beira do caos.

 

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