Líbia: “Não queremos morrer no mar”

Em depoimento, o médico Tankred Stoebe, de Médicos Sem Fronteiras, descreve a deterioração dos serviços de saúde e a situação chocante dos centros de detenção de migrantes e refugiados

Líbia: “Não queremos morrer no mar”

O conflito continua na Líbia, país fragmentado entre inúmeros centros de poder. Desde meados de 2014, a situação humanitária se deteriorou no país em decorrência da retomada da guerra civil e da instabilidade política. Milhões de pessoas são afetadas, entre elas refugiados, solicitantes de asilo e migrantes. O dr. Tankred Stoebe passou o mês de janeiro no país, coordenando uma avaliação da situação da saúde entre Misrata e Trípoli. Ele nos conta o que viu no país.

Ismael e Masjdi tinham 19 anos e eram estudantes quando a revolta começou na Líbia, em 2011. Assim como milhares de outros jovens, os dois idealistas pegaram em armas contra o regime de Muammar Gaddafi, sem qualquer treinamento ou noção de estratégias militares. Os dois jovens, que escaparam por muito pouco da morte, se encontraram muito tempo depois em Malta. Durante o conflito, Masjdi sofreu ferimentos no rosto e ficou cego, enquanto Ismael sofreu uma paralisia, e hoje só pode mexer a mão direita. Eles ficaram amigos no momento em que se conheceram, na unidade de terapia intensiva. Separados durante sua recuperação, mantiveram contato e hoje se encontram em Misrata sempre que podem. “Somos como irmãos”, me disseram em coro. Masjdi sempre empurra a cadeira de rodas para Ismael, que lê para seu amigo cego.  

Misrata é cheia de história. Estrategicamente localizada no litoral do Mediterrâneo, a cidade é conhecida tanto por seu orgulho nacional e independência como por seus comerciantes, traficantes e piratas. Submetida a confrontos pesados entre fevereiro e maio de 2011, Misrata é uma cidade desértica arenosa e empoeirada, mas bastante movimentada. Com grande poder militar e econômico, seus hospitais são bem equipados e o sistema de saúde local é mais organizado do que no leste do país. Comparada a Benghazi ou Trípoli, Misrata é no momento relativamente segura, e por esse motivo foi ali que decidimos estabelecer nossa base.

Todos os dias víamos africanos vindos do sul do Saara, cada um com seus próprios instrumentos de trabalho na agricultura ou na construção, parados em cruzamentos da cidade à procura de trabalho. Poucos deles são presos, mas alguns são pegos em barreiras policiais e aprisionados em acampamentos antes de serem deportados de volta para seus países de origem. Há cerca de 10 mil migrantes em Misrata, a maioria deles do Níger, do Chade e do Sudão.

Com medo de serem presas ou deportadas, essas pessoas, quando doentes, normalmente vão a farmácias e compram os medicamentos – frequentemente caros – que são aconselhados a tomar. Em caso de problemas mais graves, elas preferem clínicas médicas privadas que, apesar de caras, não precisam denunciar pacientes sem documentação. Porém, quando esses migrantes sofrem com alguma doença crônica, sua única opção é ir para casa. Quando perguntei se não queriam entrar em um barco para chegar à Europa, eles sorriram e balançaram a cabeça: “É perigoso demais. Não queremos morrer no mar”.

Entre Misrata e Trípoli

As condições de vida e higiene são realmente terríveis no centro de detenção de uma pequena cidade no caminho entre Misrata e Trípoli, a capital líbia. Destinada a 400 refugiados, a unidade contava com apenas 43 prisioneiros, 39 deles mulheres do Egito, da Guiné, do Níger e da Nigéria que estavam ali havia cerca de um mês sem qualquer contato com o mundo exterior ou com suas famílias. A maioria era nigeriana, e elas me contaram que suas casas haviam sido bombardeadas. A guarda costeira da Líbia interceptou seu bote inflável plástico próximo à costa do Mediterrâneo, e então elas foram mandadas ao centro de detenção.

Os quartos eram pequenos, sujos e lotados de colchões. Quando entramos no hall, havia um cheiro pútrido. Andávamos por poças de urina. Não havia chuveiros, as descargas não funcionavam e as mulheres tinham de fazer as necessidades em baldes. Elas usavam um pouco da água que tinham para beber para se lavar; estavam totalmente desesperadas e imploravam por ajuda para voltar à Nigéria. Quando contei a elas que era médico, elas não acreditaram no início, mas depois aceitaram o tratamento que lhes oferecemos. A idade média entre elas era de 22 anos, e praticamente todas (93%) tinham algum problema de saúde. Muitas tinham sarna (58%), às quais demos prescrições de medicamentos, e outras se queixavam de muitas dores e incômodos (48%). Outros males não-específicos eram decorrentes do trauma emocional – ou pelo menos foi o que deduzimos, tendo em vista as histórias que elas nos contaram sobre sua fuga e o medo quase palpável que as assombrava. Quando perguntei a elas se tentariam chegar à Europa novamente, me responderam horrorizadas: “Nunca mais!”

Sirte

Nossa visita a Sirte serviu para abrir nossos olhos. Localizada próximo a campos de petróleo, a cidade é conhecida por ser o local de nascimento de Muammar Gaddafi. Na primavera de 2015, o autoproclamado Estado Islâmico (EI), que havia controlado uma área de 300 quilômetros do litoral da Líbia, fez de Sirte seu quartel-general no país. Foi somente em dezembro do mesmo ano que milícias de Misrata conseguiram retomar o controle da cidade, com ajuda da força aérea norte-americana. A batalha durou sete meses. Muitos combatentes morreram e mais de 3 mil pessoas foram feridas. Dez ambulâncias foram danificadas e três socorristas foram mortos. Portando uma permissão especial, conseguimos entrar na cidade costeira. O local foi reduzido a escombros: nenhum prédio ficou intacto. A cidade de Sirte foi submetida a uma guerra brutal que deixou um grande rastro de destruição. Um silêncio mortal paira sobre a cidade.

Fomos ao hospital Ibn Sina, que, apesar de ter saído relativamente ileso dos bombardeios, fora saqueado. Abandonado há cerca de um ano, o hospital, em algum momento, fora uma instalação moderna, com 350 leitos e centros cirúrgicos bem equipados, além de uma unidade de terapia intensiva, um aparelho de ressonância magnética, um laboratório de cateterismo cardíaco e vinte máquinas de diálise praticamente novas. Hoje, a instalação está completamente destruída, com pisos arrancados, janelas quebradas e telhas fora do lugar.

Trípoli

Quando chegamos a Trípoli, fiquei chocado com a altura das ruínas. Colegas de MSF estavam na capital oferecendo assistência a pessoas distribuídas em sete centros de detenção. A maioria dos que querem cruzar o Mediterrâneo para chegar à Itália são da África subsaariana – Nigéria, imersa em conflito; Eritreia, governada por um regime autoritário, e Somália, presa em uma guerra civil. As pessoas fogem em direção ao norte para escapar da pobreza e do terror. Para chegar à costa da Líbia, elas têm que passar pelo Chade e pelo Níger, ambos países pobres. De acordo com a Organização Internacional para a Migração (OIM), mais de 300 mil pessoas fizeram essa travessia no ano passado. Contudo, não há dados precisos sobre os que morreram de fome, sede ou por se acidentarem no caminho. De acordo com boa parte das estimativas, pelo menos tantas pessoas morreram na travessia do deserto quanto as que se afogaram no Mediterrâneo – as estatísticas de mortes por afogamento, de 5.079 pessoas em 2016 apenas, são mais confiáveis. Seja como for, os sobreviventes insistem que o deserto é, de longe, a parte mais difícil da jornada.

A grande quantidade de migrantes mortos também configura um problema. Fomos ao mortuário do hospital, lotado de corpos não identificados encontrados em praias ou de pessoas que morreram de causas desconhecidas. Muitos desses corpos estavam ali há meses. Como as autoridades não dispõem de recursos para realizar testes de DNA, é impossível identificar o corpo e mandá-lo de volta para casa ou enterrá-lo.

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