Israel ameaça banir organizações humanitárias em meio a fome em Gaza

MSF e mais de 100 organizações pedem o fim da militarização da ajuda humanitária pelas autoridades israelenses

Ola segura seu filho de oito meses, Nour Al-Shaer, que sofre de desnutrição grave. Gaza, Palestina, agosto de 2025. © Nour Alsaqqa

Embora as autoridades israelenses afirmem que não há restrições à entrada de ajuda humanitária em Gaza, a maioria das organizações internacionais não conseguiu entregar sequer um caminhão com suprimentos essenciais desde 2 de março.

Em vez de liberar o acúmulo crescente de mercadorias, as autoridades israelenses negaram pedidos de dezenas de ONGs para levar itens vitais, alegando que essas entidades “não estão autorizadas a fornecer ajuda”. Só em julho, mais de 60 solicitações foram recusadas com base nessa justificativa.

Essa obstrução deixou milhões de dólares em alimentos, medicamentos, água e itens para abrigo retidos em armazéns na Jordânia e no Egito, enquanto os palestinos passam fome.

“A Anera tem mais de US$ 7 milhões em suprimentos essenciais prontos para entrar em Gaza – incluindo 744 toneladas de arroz, o suficiente para fornecer 6 milhões de refeições, bloqueados em Ashdod, a poucos quilômetros de distância”, disse Sean Carroll, presidente e CEO da Anera.

Muitas das ONGs que agora foram informadas de que não estão “autorizadas” a entregar ajuda humanitária trabalham em Gaza há décadas, têm a confiança das comunidades e experiência na distribuição segura de itens de ajuda humanitária. Sua exclusão deixou hospitais sem suprimentos básicos, enquanto crianças, pessoas com deficiência e idosos morrem de fome ou de doenças evitáveis — e até mesmo profissionais humanitários permanecem sem ter o que comer.

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A obstrução está ligada às novas regras de registro de ONGs internacionais implementadas em março. Sob essas novas regras, o registro pode ser negado com base em critérios vagos e politizados, como a suposta “deslegitimação” do Estado de Israel.

As ONGs internacionais alertaram que o processo foi projetado para controlar organizações independentes, silenciar ativistas e censurar reportagens humanitárias.

Essa nova obstrução burocrática é inconsistente com o direito internacional estabelecido, pois consolida o controle e a anexação israelense do território palestino ocupado.

A menos que as ONGs internacionais se submetam a todas as exigências de registro — incluindo a entrega obrigatória de informações sobre doadores privados, listas completas de profissionais palestinos e outros dados confidenciais da equipe para a chamada “verificação de segurança” das autoridades israelenses — muitas poderão ser forçadas a interromper suas atividades em Gaza e na Cisjordânia, incluindo Jerusalém Oriental, e retirar todos os profissionais internacionais dentro de 60 dias. Algumas organizações chegaram a receber um ultimato de sete dias para fornecer as listas de profissionais palestinos.

As ONGs ressaltam que o compartilhamento desses dados é ilegal — inclusive à luz de leis relevantes de proteção de dados —, além de inseguro e incompatível com os princípios humanitários. No contexto mais letal para trabalhadores humanitários em todo o mundo, no qual 98% dos profissionais mortos eram locais, não há qualquer garantia de que fornecer essas informações não exporia ainda mais as equipes a riscos ou que elas não seriam utilizadas para promover objetivos militares e políticos declarados pelo governo de Israel.

Hoje, os temores das ONGs internacionais se confirmaram: o sistema de registro está sendo usado para bloquear ainda mais a ajuda e negar alimentos e medicamentos em meio ao pior cenário de fome.

“Desde que o cerco total foi imposto em 2 de março, a CARE não conseguiu entregar nenhum dos nossos suprimentos pré-posicionados no valor de US$ 1,5 milhão em Gaza”, disse Jolien Veldwijk, diretora nacional da CARE.

“Isso inclui remessas essenciais de cestas básicas, suprimentos médicos, kits de higiene e itens de cuidados materno-infantis. Nosso mandato é salvar vidas, mas, devido às restrições de registro, os civis estão ficando sem os alimentos, medicamentos e proteção de que precisam urgentemente”, completa Jolien Veldwijk.

“A Oxfam tem mais de US$ 2,5 milhões em mercadorias que foram rejeitadas por Israel para entrar em Gaza, especialmente itens de higiene, água, bem como alimentos”, disse Bushra Khalidi, líder de políticas da Oxfam. “Este processo de registro sinaliza às organizações internacionais que sua capacidade de operar pode ter como custo sua independência e capacidade de se manifestar.”

 

Distribuição de ajuda letal e desumana

Essas restrições fazem parte de uma estratégia mais ampla que inclui o chamado esquema “Fundação Humanitária de Gaza (GHF, na sigla em inglês)” – um mecanismo de distribuição militarizado promovido como uma solução humanitária. Na realidade, trata-se de uma ferramenta mortal de controle, com pelo menos 859 palestinos mortos em torno dos locais de atuação da GHF desde que ele começou a operar.

O esquema militarizado de distribuição de alimentos transformou a fome em arma e causa sofrimento.”
Aitor Zabalgogeazkoa, coordenador de emergências de MSF em Gaza

“As distribuições nos locais da GHF resultaram em níveis extremos de violência e mortes, principalmente de jovens palestinos, mas também de mulheres e crianças, que foram aos locais na esperança de receber alimentos”, segundo Aitor Zabalgogeazkoa, coordenador de emergências de MSF em Gaza.

 

Ajuda precisa entrar em larga escala agora

Tanto o esquema GHF quanto o processo de registro das ONGs internacionais visam bloquear a ajuda imparcial, excluir os profissionais palestinos e substituir organizações humanitárias confiáveis por mecanismos que servem a objetivos políticos e militares.

Eles surgem no momento em que o governo de Israel intensifica sua ofensiva militar e aprofunda sua ocupação em Gaza, deixando claro que essas medidas fazem parte de uma estratégia mais ampla para consolidar o controle e apagar a presença palestina.

“Neste momento, todos sabem qual é a resposta correta e humana, e não é um cais flutuante, lançamentos aéreos ou a GHF. A resposta para salvar vidas, salvar os civis e não ser cúmplice na fome em massa planejada é abrir todas as fronteiras, a qualquer hora, para os milhares de caminhões, milhões de refeições e suprimentos médicos, prontos estacionados nas proximidades”, disse Sean Carroll, da Anera.

 

Apelamos a todos os Estados e doadores para que:

• Pressionem Israel pelo fim da militarização da ajuda humanitária, incluindo por meio de obstruções burocráticas, tais como os procedimentos de registo das ONG internacionais.

• Insistam para que as ONG internacionais não sejam obrigadas a partilhar informações pessoais sensíveis, em violação do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados, nem a comprometer a segurança ou a independência de suas equipes como condição para a prestação de ajuda.

• Exijam a abertura imediata e incondicional de todas as passagens terrestres e condições viáveis para a entrega de ajuda humanitária.

 

Sobre o contexto e histórias de obstruções às organizações humanitárias em Gaza:

• O território palestino ocupado é o cenário mais mortal para os trabalhadores humanitários em todo o mundo, com os profissionais palestinos representando 98% das mortes entre as equipes humanitárias: 509 das 517 mortes ocorridas entre 2023 e 2025, de acordo com o Banco de Dados de Segurança dos Trabalhadores Humanitários.

• Em 6 de maio, 55 organizações alertaram que as novas medidas de registro de ONGs internacionais de Israel são uma grave ameaça às operações humanitárias e ao Direito Internacional.

• Em 1º de julho, mais de 200 organizações pediram ação imediata para acabar com o esquema de distribuição mortal de Israel, incluindo a chamada GHF em Gaza, reverter a decisão sobre os mecanismos de coordenação existentes liderados pela ONU e suspender o bloqueio do governo israelense à ajuda e à entrada de suprimentos.

• Em 23 de julho, mais de 100 organizações alertaram que, à medida que a fome em massa se espalha por Gaza, nossos colegas e as pessoas que fornecemos assistência estão definhando.

• Em 29 de julho, a Classificação Integrada de Segurança Alimentar (IPC), das Nações Unidas, mostrou que o pior cenário de fome está acontecendo atualmente na Faixa de Gaza.

• Israel negou ter restringido a quantidade de ajuda humanitária permitida em Gaza, inclusive durante todo o período de julho de 2025, quando a maioria das negações discutidas nesta declaração foram emitidas.

• Em 31 de julho, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR, na sigla em inglês) escreveu que, desde 27 de maio, pelo menos 1.373 palestinos foram mortos enquanto procuravam comida; 859 nas proximidades dos locais de distribuição da GHF e 514 ao longo das rotas dos comboios de alimentos. A maioria dessas mortes foi cometida pelas forças israelenses.

• Em 4 de agosto, um enfermeiro palestino foi morto quando um lançamento aéreo o atingiu em Gaza.

• Em 5 de agosto, foi relatado que as autoridades israelenses estão planejando a ocupação total da Faixa de Gaza.

• Em 6 de agosto, agências da ONU e ONGs alertaram que, sem ação imediata, a maioria das organizações internacionais parceiras poderiam ter seu registro cancelado por Israel nas próximas semanas.

• Em 6 de agosto, a Autoridade de Proteção de Dados da Holanda (DPA) concluiu que as solicitações de informações de Israel no âmbito do processo de registro de ONGs internacionais correm o risco de violar o Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR). A DPA recomendou que as ONGs internacionais não atendessem a essas solicitações e que a única solução seria Israel alterar seus requisitos e os ministérios relevantes emitirem um protesto formal.

• Em 7 de agosto, Médicos Sem Fronteiras (MSF) divulgou um relatório afirmando que as distribuições de alimentos em Gaza realizadas pela chamada “GHF” são locais de “assassinatos orquestrados e desumanização” que devem parar.

• Em 10 de agosto, a Save the Children relatou a morte de 100 crianças devido à fome em Gaza desde outubro de 2023.

• Em 12 de agosto, um grupo de Relatores Especiais da ONU sobre direitos humanos publicou uma carta ao governo israelense, manifestando profunda preocupação com o fato de que as medidas de registro das ONGs internacionais “enfraquecem a capacidade delas de operar de forma independente e imparcial e de realizar seu trabalho humanitário e de direitos humanos sem interferência ou medo de represálias” e que “a obrigação de informar sobre os profissionais contratados pelas ONGs internacionais, no contexto da ocupação, do conflito armado e de graves violações do Direito Internacional, poderia suscitar sérias preocupações em matéria de proteção e represálias.

 

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