Iraque: “Os refugiados deixaram tudo para trás”

O australiano Robert Onus fala sobre sua atuação como líder de equipe logística de MSF em Dohuk

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Os sete meses que passou no Iraque foram um desafio e tanto para o australiano Robert Onus, líder de equipe logística. Foi como uma luta incessante contra o tempo para conseguir oferecer a refugiados, deslocados internos e habitantes locais acesso à ajuda médica e humanitária. Desde a necessidade de garantir os suprimentos e administrar a logística à reabilitação de centros de saúde, Robert nos leva pelo seu trabalho com a organização humanitária internacional Médicos Sem Fronteiras (MSF) nessa região mergulhada no caos.

No que consistiu seu trabalho nesse projeto?

Grande parte do meu trabalho era voltada para a gestão de suprimentos – 75% dos suprimentos que precisávamos para o país estavam chegando por Dohuk, onde eu estava baseado. Tivemos de lidar com importação e exportação, compra local, depósito e transporte [de suprimentos] aos vários outros projetos. Outra grande atividade era a reabilitação/construção de estruturas, na medida em que estávamos nos preparando para repassar o centro de saúde de um dos acampamentos de refugiados próximo a Domeez para as autoridades locais. Como parte desse processo, nós tivemos de reabilitar alguns edifícios antigos, mover escritórios, construir latrinas novas, melhorar a área de gestão de resíduos e fazer diversos serviços menores.

Mas o aspecto mais desafiador era gerenciar a logística do projeto de clínicas móveis que estávamos operando em Ninewa. Esse projeto estava baseado em uma região próximo a frentes de batalha entre o Estado Islâmico (EI) e as forças curdas e, como a distância era longa dali para o nosso principal escritório em Dohuk, nós tivemos de começar efetivamente do zero, construindo uma nova base, escritório e casa em uma pequena cidade na região. Achar uma casa parece simples, mas, nessa região, sete em cada dez casas foram danificadas ou destruídas por confrontos e muitas ainda tinham armadilhas ou continham dispositivos explosivos. Uma vez que havíamos encontrado uma casa que realmente poderíamos alugar, em seguida, tivemos de fazer a reabilitação para atender às necessidades do projeto.

Como era a vida no Iraque?

É difícil descrever a vida aqui. Por um lado, é simples, comum e banal. Eu vivi metade da minha vida em Dohuk, uma cidade moderna com instalações modernas. E, então, eu vivi a outra metade trabalhando nessa área rural perto de frentes de batalha, em um pequeno vilarejo com apenas condições básicas.

A área perto das frentes de batalha é um vasto pedaço de terra, não muito diferente de Nova Gales do Sul, no noroeste da Austrália, de onde eu vim. Amplas colinas são cobertas por trigo e rebanhos aleatórios de ovelhas em todo o campo, normalmente vigiados por um menino sentado de lado em um jumento, com o rosto completamente coberto por um lenço vermelho e branco para se proteger do sol.

O conflito na região onde estávamos trabalhando parecia ir e vir, mas, geralmente, permanecia estável no outro lado da pequena cordilheira ao sul de onde estávamos baseados. O som de jatos da coalizão, torres de fumaça esporádicas pelas montanhas, comboios militares e aparentes pontos de controle infinitos eram os únicos sinais de que estávamos em meio a uma zona de guerra.

Quais foram seus desafios mais difíceis?

Pessoalmente, o principal desafio, certamente, era a quantidade de trabalho que tínhamos de realizar nos vários projetos que estávamos mantendo. As necessidades eram infinitas e a falta de recursos e o perigo associado ao acesso a certas áreas limitam o que você pode ou poderia fazer. Mesmo que eu tivesse trabalhado 12, 14 ou 16 horas por dia, o montante de trabalho que eu tinha a fazer parecia aumentar de um dia para a outro.

Para mim, o elemento mais difícil era tentar imaginar uma solução de longo prazo para essa guerra. Claro que esse não é o nosso papel em MSF – estamos aqui para lidar com os problemas médicos enfrentados pelas pessoas, não para encontrar uma solução política. Ainda assim, em projetos anteriores, como na epidemia de Ebola, era difícil, mas nós sabíamos que poderíamos achar a solução. Nesse conflito, estamos prestando suporte às pessoas que não têm nada, mas quem pode dizer quando a situação de forma geral vai melhorar por aqui?

Como estão as condições no Iraque?

Há acampamentos para refugiados e deslocados internos espalhados pela região autônoma do Curdistão iraquiano. Na província de Dohuk, onde eu estava baseado, havia 18 acampamentos que abrigavam os deslocados. As condições variam de acampamento para acampamento, mas todos sofrem das mesmas dificuldades básicas – a maioria das pessoas está vivendo com uma família inteira em uma pequena tenda com temperaturas que variam de menos zero no inverno a cerca de 50 graus no verão, com o acesso mais básico à água e saneamento, alimentos e abrigo.

A situação talvez seja ainda pior para aqueles que não estão nos acampamentos, mas ainda vivem em edifícios inacabados e tendas espalhadas ao redor das cidades. Os edifícios são grandes estruturas de concreto em pedaços, de vários andares de altura. Nenhuma das paredes está inteira e eles vivem apenas com o conceito básico de abrigo. As pessoas usam lonas plásticas como paredes, mas, de novo, elas têm apenas acesso limitado à água e saneamento. Nós trabalhamos em locais onde o piso inferior foi transformado em um gigante esgoto a céu aberto. Era meio do inverno, então estava congelante, e havia lixo por todas as partes. Claro que as pessoas vão ficar doentes e teremos epidemias nesse tipo de contexto.

Como era a sua relação com a equipe nacional?

A equipe era ótima. Nós tínhamos profissionais iraquianos e sírios. Todos eram excepcionalmente capazes e eu dependia fortemente deles. Fora do trabalho, nos raros fins de semana em que eu poderia tirar um dia de folga, nós íamos até as montanhas ou próximo a um rio para fazer um piquenique.

A província de Dohuk é o lar de cerca de 500 mil pessoas que estão deslocadas internamente ou refugiadas. Entre essas pessoas, que estão vivendo em situações precárias, você tem muitas capacitadas e motivadas a trabalhar no que podem para ajudar suas famílias. Um dos membros da minha equipe tinha um diploma em física; outro tinha um diploma em literatura e era um eletricista qualificado.

Também tivemos profissionais que deixaram o Iraque para ir à Europa em busca de uma vida melhor, especialmente aqueles que eram eles próprios refugiados no Iraque. Alguns profissionais foram embora com suas famílias, apesar de saberem dos riscos que enfrentariam, eles não viam alternativa. Muitas cidades na Síria estão destruídas, não há nenhuma esperança de retorno, e o futuro de todo o país está sob uma nuvem pesada. Então, o que você pode fazer? Viver o resto de sua vida na incerteza e esperar que essa guerra prolongada acabe para ter uma chance de ir para casa ou tentar construir uma vida em algum lugar?

MSF no Iraque

Atualmente, MSF atua em 11 províncias pelo Iraque para oferecer cuidados médicos gratuitos e imparciais às pessoas afetadas pelo conflito. Nos primeiros seis meses de 2015, equipes de MSF realizaram 126.722 consultas no país.

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