Indígenas migrantes venezuelanos enfrentam barreiras no acesso à saúde e serviços básicos no Brasil

Médicos Sem Fronteiras (MSF) oferece cuidados médicos e psicossociais em comunidades, abrigos não oficiais e ocupações espontâneas de Roraima

Foto: Diego Baravelli/MSF

“Tenho muita dor de cabeça e sofro de depressão. É por causa da minha visão que tem um problema, que me atrapalha para fazer o artesanato. Não vejo bem os tecidos e, de longe, fica tudo borrado, mas não consigo ajuda médica”, diz Maria Rosa Pérez, 55 anos, indígena venezuelana da etnia Warao. Ela mora em Boa Vista, capital de Roraima, na ocupação espontânea Warao Iakera Ine, que antes era o abrigo conhecido como Pintolândia.

Assim como Maria, os indígenas venezuelanos enfrentam muitas barreiras para ter acesso à saúde. Sem atendimento médico adequado, sofrem com diversas doenças que poderiam ser tratadas ou até evitadas facilmente. As condições gerais dos abrigos não oficiais e das ocupações espontâneas também agravam a situação. Muitos têm dificuldades de acesso à água e nem sempre há comida suficiente. Os casos de insegurança alimentar já chamam a atenção.

Foto: Diego Baravelli/MSF

Mulheres indígenas da ocupação espontânea Warao Iakera Ine, em Boa Vista, Roraima, vestidas com trajes típicos usados durante uma dança tradicional

A porta de entrada dos indígenas venezuelanos ao sistema de saúde é o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI), que é a unidade gestora da rede de atenção médica dos povos originários brasileiros. No entanto, para utilizar os serviços de saúde, é preciso ser reconhecido oficialmente como indígena migrante por um censo. E esse processo não é simples. Ele pode variar de comunidade para comunidade e até exigir documentos, como alguma forma de comprovante de residência, o que é bastante difícil para alguém que está fora de seu país, principalmente um recém-chegado.

Sem atendimento especializado em saúde indígena, sobra como opção o Sistema Único de Saúde (SUS).

 

Foto: Diego Baravelli/MSF

A médica Tatiana Hoffmann e a mediadora cultural Yoximar Lezema na tenda de atendimento de MSF na comunidade indígena Sakau Motá, em Roraima

 

O SUS atende essas pessoas? Sim, mas o problema é que muitos dos indígenas venezuelanos não falam nem espanhol, muito menos português. O SUS não tem condições de lidar com as diferenças culturais”, afirma Henry Rodríguez, coordenador do projeto de MSF em Roraima.



No estado desde 2018, a organização está na região para apoiar o sistema de saúde local, historicamente frágil e ainda mais sobrecarregado pelo grande fluxo migratório. MSF também atua nesta lacuna de atendimento aos indígenas migrantes e atende as populações nas cidades de Boa Vista, capital do Estado, e em Pacaraima, cidade que faz fronteira com a Venezuela.

Foto: Diego Baravelli/MSF
Foto: Diego Baravelli/MSF

Enquanto aguardam atendimento, os pacientes recebem informações das promotoras de saúde de MSF na comunidade de Sakau Motá, em Roraima

Foto: Diego Baravelli/MSF
Foto: Diego Baravelli/MSF

 

A indígena Warao Maria Rosa Pérez confirma que é difícil acessar o sistema de saúde. Quando perguntada sobre atendimento médico, ela diz que já buscou ajuda muitas vezes desde que está no Brasil. “Estou há sete anos aqui, mas não, não consigo atendimento. Eles me pedem documentos e só documentos. Não me ajudaram em nada”, conta. Com cada vez mais dificuldades para enxergar, ela também luta para fazer os artesanatos manuais, que são sua única forma de sustento. “Vendendo de pouquinho em pouquinho para comprar comida, a farinha. Estamos lutando muito aqui”, explica.

A ocupação espontânea Warao Iakera Ine, onde ela mora, já foi um abrigo oficial para os indígenas migrantes das etnias Warao e e E’ñepá. Recentemente, as autoridades decidiram fechar o local e levar a comunidade para um outro espaço, que, entre outros problemas, ficava bem mais longe. Com dois netos na escola, Maria decidiu não ir para que eles pudessem continuar a ter aulas.

 

 

Aqui já foi a casa dos Warao, mas agora não é mais nada. Estou muito triste. Deprimida”, conta.




Em Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, acesso à saúde é ainda mais difícil

Foto: Diego Baravelli/MSF

 

Se na capital, Boa Vista, as dificuldades para ter direito a atendimento médico são muitas, em Pacaraima, a 200 quilômetros de distância, os indígenas encontram ainda mais barreiras. Na cidade fronteiriça com a Venezuela, as unidades de saúde são muito pequenas e não há consultas com especialistas.

A comunidade indígena de acolhida Sakau Motá fica a 15 quilômetros de Pacaraima, mas para chegar lá as condições das estradas são péssimas. Em caminhonetes com tração 4×4, as equipes de MSF fazem uma viagem que pode levar até duas horas.

Foto: Diego Baravelli/MSF
Foto: Diego Baravelli/MSF
Foto: Diego Baravelli/MSF

 

Para os indígenas brasileiros de Sakau Motá, que dividem espaço com os venezuelanos, o sistema de saúde especial do DSEI garante transferências da comunidade para Boa Vista e um local para pernoitar, enquanto aguardam pela consulta médica longe de casa. Já aos indígenas venezuelanos, não. “Se eles precisam de um especialista, só terão em Boa Vista e essas pessoas têm que buscar uma maneira de ir. Têm que fazer por conta própria. Eu não sei como eles fazem”, questiona Rodríguez, coordenador do projeto de MSF.

Foto: Diego Baravelli/MSF

 

“Já estive com os profissionais de MSF algumas vezes. Tenho o tornozelo quebrado, por isso uso isso aqui para andar [aponta para uma bengala] e tenho um problema de próstata que me obriga a usar uma sonda. Para trocar a sonda, tenho que ir para Boa Vista, mas sou pobre, não tenho ajuda. Em Pacaraima [que é mais perto] não fazem e também não têm medicamentos. Quando tenho que fazer exames médicos, tenho que pagar, mas sou pobre. Estava a ponto de fazer uma cirurgia para a próstata, então me disseram que dentro de 15 dias iam me operar. Isso foi em 2020, em Boa Vista. Neste tempo, começou a pandemia e cortaram tudo. Então estou esperando que me chamem até hoje”, conta Samuel Lott, indígena venezuelano da etnia Akawayo, que vive em Sakau Motá.

Foto: Diego Baravelli/MSF

A indígena venezuelana Margarita Serpa não consegue nem caminhar até a clínica móvel, por isso um carro de MSF leva ela e a irmã, Eugênia, à tenda médica. “Minha irmã tem problemas visuais, motores e intelectuais. Ela nasceu com um tumor e fez uma cirurgia na Venezuela, que causou essas sequelas”, explica Eugênia. Elas já foram até Boa Vista para tentar uma consulta com um neurologista, mas não conseguiram.

Além do desalento provocado pela falta de assistência para a irmã, Eugênia ainda perdeu recentemente uma filha de 14 anos com leucemia. O óbito, que aconteceu no início de outubro, está provocando sofrimento mental. “Agora vou conversar com a psicóloga de MSF. Não quero continuar, quero me entregar. Eu já lutei muito, mas já não quero mais. Vou falar com ela. Me sinto só, sem trabalho, cuidando da minha irmã [doente]. Me sinto como se estivesse acabada, em um círculo sem saída. E isso tem me feito bastante mal”, lamenta Eugênia.



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